Amor Eterno

Eram quase quatro da tarde. Enquanto pensava em mais um novo final para minha história, surgiram dois pés com sapatos brancos ao meu lado. Silenciosos como sempre, o dono daqueles pés trajava as costumeiras calças brancas e estacou ao meu lado esperando que eu percebesse sua presença. Eu já sabia que ele estaria ali há tempos. Ou pelo menos há pelo menos quinze minutos. O relógio do meu notebook já indicava isso e eu sabia. E ele era pontual. Sempre. Aliás, com todos nós internos.

De minha posição sentada, com meu lado direito apoiado em uma das colunas da parede externa da varanda – o prédio era antigo e as colunas sobressaíam das paredes - só fiz esticar o braço para apanhar a medicação que ele estava ali para me trazer. Como o copinho plástico não era depositado na minha mão e meu braço já começava a dar sinais de cansaço reclamei sem olhar para o enfermeiro:

- Como é? Vai ficar aí parado como um “dois de paus” ou vai me dar logo esses comprimidos?

- O que está escrevendo Sabrina?

- Nada que seja da sua conta – respondi seca.

- Educada como sempre. Aqui. Seus comprimidos.

Quase arranquei os comprimidos da mão do enfermeiro e o copo de água e engoli tudo. Atirei ambos ao chão e ele se agachou para apanhá-los. Aproveitou para me olhar nos olhos.

- Sabrina... Sabrina...

- Cai fora! Já lhe disse mil vezes que não preciso da sua piedade nem da sua companhia! – falei já aumentando meu tom de voz.

- Fale um pouco mais alto e você sabe o que acontece...

- Seu... Seu...

- Não sou eu quem faz as regras por aqui. Se quiser ser bem tratada e continuar tendo suas regalias que a sua família rica e influente consegue com o diretor, tem que respeitar as regras e principalmente me respeitar. Justamente eu que quero tão bem você. Ao dizer isso o enfermeiro tentou alisar meu cabelo comprido, ajeitando o que caía, colocando-o atrás do pescoço.

- Vai pro inferno! – explodi, dando um tapa na mão dele.

O enfermeiro abaixou a cabeça triste. Suspirou e me olhou nos olhos. O que encontrou foi só ódio. Ódio dos homens. Ódio de mim. Ódio do mundo.

- Ainda vou conseguir fazer você entender o quanto eu posso lhe ajudar. O quanto a sua história é parecida com a de milhares de outras pessoas e...

E ele parou pensando se realmente deveria dizer aquilo, afinal de contas, estaria se comprometendo e arriscando o emprego e a ser delatado pela mais mimada e influente paciente daquele hospital psiquiátrico. Na sua reflexão, vi nos seus olhos uma luz que não via há muito tempo. Uma luz chamada amor. Era como se estivesse nadando no mar escuro por muito tempo e de repente olhasse para cima e visse a luz do sol projetada na superfície do mar. Aquela luz me fascinou. Nadei para cima, para o alto, para essa luz. Mas de repente me lembrei do passado, do motivo de restar ali, dos meus planos futuros, dos comprimidos no bolso do pijama – sim, eu fingia tomá-los, mas guardava-os todos nos bolso e depois no meu quarto, para uma “ocasião especial” – e então a luz se tornou um borrão, a angústia, que era até então uma lembrança, acordou como um dragão enfurecido e cuspiu seu fogo no meu sangue e no meu coração, queimando a tudo e a todos. Eu já não conseguia mais nadar. Uma corrente grossíssima atava minhas pernas e eu estava sendo arrastada novamente para baixo, para o fundo do mar escuro. Mas ao contrário de ser dragada para o fundo, emergi no passado, e a cena era a mesma que me assombrava desde o dia que a presenciara. Uma igreja, meu noivo – cuja vida e o relacionamento eu me dedicara de corpo e alma – e ele se casando com outra no mesmo dia que havíamos marcado o nosso próprio casamento. Logo, não foi difícil ligar os pontos. Ele havia usado todo o dinheiro que eu havia investido em nosso relacionamento para construir o relacionamento dele, a vida dele e o casamento dele com a outra. Pagou tudo – claro que um casamento mais modesto, afinal ele tinha que dividir as despesas com ela que também era de família não tão abastada como a minha – com o dinheiro que eu dava para ele e marcou o casamento no mesmo dia que havíamos marcado o nosso. Descobri por acaso. Para o azar dele, como o casamento era mais simples, ele teve de usar os serviços de fotos da igreja. O fotógrafo era namorado de uma amiga minha e ele disse que quando reconheceu o noivo quase entrou em choque. Achei que ele estava enganado e que era trote. Brincadeira de mau gosto. Só acreditei quando ele me mostrou as fotos que ele havia tirado. Ou melhor, mal pude acreditar. Na igreja, tentei atrapalhar o casamento invadindo a igreja para dar um escândalo, mas fui contida. No mesmo dia, voltei para casa e tentei o suicídio com um monte de remédios. Infelizmente fui socorrida e, como minha família é da alta sociedade e tem um nome a zelar, preferiram abafar o caso. Então, me trouxeram para cá. Uma de minhas regalias é um notebook que o dinheiro da minha família compra junto ao diretor dessa porcaria de clínica. A outra é ter o tratamento VIP do mesmo enfermeiro sempre. O que acabou dando nisso.

- Ainda vou conseguir fazer você entender o quanto eu posso lhe ajudar. O quanto a sua história é parecida com a de milhares de outras pessoas e...

Aquela pausa eu já conhecia, só não esperava o que ele iria dizer em seguida.

-... e o quanto eu amo você.

O enfermeiro disse isso com todo aquele amor que eu via nos olhos dele. Mas infelizmente eu tinha sido burra o suficiente para planejar meu suicídio pela segunda vez desde que pusera meus pés aqui. E isso tinha congelado para sempre minha alma e meu coração. Depois de dizer aquilo que ele sabia que poderia ferrar com seu emprego – porque ele poderia perder sua posição privilegiada e o próprio emprego; Funcionários não podem se relacionar com pacientes. É terminantemente proibido. – ele baixou a cabeça, levantou-se e foi embora. Deixou-me ali, esperando que eu refletisse naquilo que havia dito. Esperando que a centelha de amor que brotava de seus olhos me salvasse do que eu estava prestes a fazer e que ele nem desconfiava. Fiquei observando um pouco, pelo canto dos olhos, enquanto ele se afastava. Parou duas vezes para falar com pacientes e uma para assinar algo no corredor imenso da clínica. Depois sumiu num dos corredores e não o vi mais aquele dia. Terminei aquela última linha da história que eu estava escrevendo, fechei o notebook e me levantei, encaminhando-me para meu quarto. Lá já tinha tudo pronto. Tirei os quatro últimos comprimidos que tinham me dado e juntei com os outros que eu mantinha escondido num livro cujas páginas eu havia escavado e formado um compartimento para esse fim. “Morte e vida Severina”. “Quanta ironia!” pensei ao me dar conta do título que escolhera a esmo para preparar meu esconderijo, quando resolvi arquitetar meu plano. Era uma boa quantidade. Devia ter uns 40 ou 50 comprimidos. Tirei todos do compartimento no livro e juntei sobre a colcha da cama. Ajeitei o travesseiro para deitar em seguida, pois sabia que o tempo dos comprimidos, o efeito de cada um podia variar – da sonolência ao coma profundo – em questão de minutos a algumas horas. Só não tinha ideia de como a dose poderia influir nisso tudo. Mas isso já não importava mais. Precisava correr. Havia uma inspeção em cada quarto e a minha iria ocorrer em vinte minutos. Se quisesse mesmo levar a cabo minha decisão tinha que ser rápida. Olhei mais uma vez os comprimidos ali em cima da cama e apanhei primeiro um e um copo de água. Um gole. Depois outros três. Mais um gole. Mais quatro. Mais um gole. Os menores iam de seis em seis. Outro gole. Já engolia de cinco em cinco. Quase engasguei num dos goles de água, mas mantive o controle. Estava quase terminando. Olhei no relógio. Tinha levado quase dez minutos para tomar tudo aquilo. Maldição! Não vai dar tempo! Pensei em vomitar tudo. Mas aí teria que juntar tudo de novo. Mais risco. Mais tempo. Mais tudo. Teria que arriscar. Deitei e esperei. Ouvi sons distantes. Passos. Era a ronda da revista. Não. Os passos estavam muito distantes. As vozes. As luzes dançantes. E tudo me pareceu tão lindo e quieto. Os sons sumiram. As luzes escureceram. E eu acordei. Estava num hospital. Mas era um hospital velho e sujo. Faltava luz e era noite. Trovões e raios iluminavam o horizonte na janela sem cortinas e de vidros quebrados ao meu lado. Em meio a um dos raios e trovões tive uma visão. Tinham achado o notebook que eu havia deixado em cima da cama no meu quarto. Um único arquivo no disco rígido era um arquivo de um editor de texto com uma única linha. Anunciava meu intento, o que na prática não me daria nenhuma garantia de sucesso. Mas foi exatamente o que aconteceu. Sucesso. Ainda no hospital parecia tudo abandonado e tétrico. Tudo eram tristeza e solidão. Imediatamente arrependi-me de meu ato e no mesmo segundo que esse pensamento atravessou minha mente eu escutei uma voz rascante cortar os céus e me dizer “Suicida!”. Senti medo. Senti frio e fome. Saí caminhando sem rumo e a esmo tentando achar alguém que me ajudasse. Então senti uma mão tocando meu ombro. Virei-me assustada, mas o que vi aliviou-me instantaneamente. Era o enfermeiro. Sem pestanejar exclamei:

- Você aqui?!

- Não disse que seria capaz de fazer qualquer coisa para fazer você entender o quanto eu poderia lhe ajudar e...

- E? – perguntei ansiosa. No hospital tinha sido dura com ele. Mas ali precisava de ajuda.

-... E o quanto eu ainda amo você...

- Você ainda é apaixonado por mim?

- Sim! E o serei por toda a eternidade.

- Mas, por quê?

- Isso importa? Ele falou isso com um sorriso triste nos lábios. Um sorriso de quem não tem na verdade uma boa explicação para aquilo que faz ou sente. Só faz. Ou só sente. Eu estava querendo que ele explicasse uma coisa que na verdade não tem a menor necessidade de explicação.

- É... Acho que não. Desculpe. Ajude-me. Será que ainda dá tempo? A pergunta retórica saiu sufocada. Não tinha alternativa. Ali era minha última chance. Precisava, num desespero visceral. Não sabia por que. Só sabia. Meu coração que parecia ter parado no dia em que vi meu noivo na igreja com outra e depois quando o fiz parar de verdade, parecia querer voltar a bater. Parecia precisar bater de novo. Mas principalmente, precisava bater por alguém. E eu tinha feito a minha escolha.

Então ele me abraçou e nos beijamos. Sem pudor. Ele parecia não ver a espuma branca que ainda escorria pelos cantos de minha boca, resultado da enorme quantidade de medicação que eu havia tomado para me suicidar e que ainda refletia em minha imagem espiritual. Abraçamo-nos e saímos caminhando lado a lado. No enfermeiro, atrás de sua cabeça, podia se ver o buraco por onde a bala do .45 havia saído, arrancando seu crânio, e parte da massa encefálica que ainda escorria.