O CÃO PIRENTO

Da janela de vidro de seu escritório na Alameda das Árvores, Eduardo Lins contempla, em um raríssimo momento de ócio, o estacionamento da empresa da qual, desde o dia anterior, passou a gerente geral das filiais brasileiras. Mesmo estando entre dezenas de carros de luxo, ele reconhece seu quatro portas alemão com computador de bordo. Estando a considerar a sólida trajetória de sucesso, com um sorriso no canto da boca o executivo lembra-se das muitas dificuldades que suplantou e de quantas vezes teve de tomar a caneta da mão do destino para reescrever sua própria história.

Estando a meditar, observa que um cão pirento invade o estacionamento e desfila sem a menor preocupação por entre os importados. O cão bebe a água que sai do regador e deita-se gostoso na grama ornamental da empresa. Aquela cena inflige em Eduardo um mal estar estranho, uma repulsa de ver gozar um ser tão indigno de tal deleite, mas o cão, indiferente aos acessos do observador, boceja toda tranquilidade que só a falta de sonhos permite a um vivente e espreguiça-se por um minuto inteiro para depois dobrar o pescoço de maneira que pudesse ver a face de Eduardo. Aquilo foi imediatamente tomado como uma provocação por Eduardo que decide ligar para o vigia a fim de encomendar a retirada do cão, mas quando vai pegar o telefone, o aparelho toca e a secretária o avisa que deve avaliar o relatório em cima de sua mesa para que o mesmo seja enviado a matriz ainda naquele dia.

Eduardo Lins inicia suas leituras, contudo a imagem do cão não sai de sua mente, então, arrasta a cadeira até a janela apenas para ver o animal tirar da lixeira um hambúrguer ainda intacto que ele havia jogado lá por não ter tido tempo de comê-lo na coffee-break das três. O sentimento de impotência diante da situação deixou-o indignado, o cão agora se fartando as suas custas, enquanto ele penava no trabalho apesar de rico.

O exigente cão comeu o recheio do hambúrguer e espalhou o resto pelo pátio. Eduardo ligou para o vigia:

- Seu Jorge, um cão sujou todo o pátio de lixo, tome uma providência imediatamente! O vigia pegou uma vassoura e uma pá e começou a recolher o lixo observado de longe pelo cão que estava deitado a sombra da SUV de Eduardo. O gerente esmurrava desesperado o blindex para que o vigia o olhasse e ele pudesse apontar-lhe o cão:

- Maravilha! Agora contratei um mordomo para limpar-lhe a sujeira – desistindo de alertar seu Jorge.

Eduardo voltou ao relatório, mas cinco minutos depois, ao cão pirento que agora rodeava a poodle que a supervisora Jackeline levara para o serviço, pois a “bichinha” estava estressada de passar o dia inteiro em um apartamento. Boquiaberto viu o cão aplicar-lhe uma terapia canina para curar-lhe o stress. Eduardo correr para impedir o crime, mas deu de frente com sua secretária estendendo a mão e pedindo-lhe o relatório, antes de encerrar o expediente.

- Por favor, dona Ione, só mais cinco minutos.

- por mim tudo bem Sr. Eduardo, mas o pessoal em Amsterdã está esperando impaciente um fax da avaliação.

O retorno à sala deixou Eduardo completamente humilhado, sentia-se como um cão de coleira cuja corrente muito curta impedia-o de alcançar a vasilha de comida. Assim que terminou a avaliação foi à janela e viu o cão pirento vertendo urina na magnífica roda cromada de seu possante que mandou trazer da Inglaterra. Saiu apressado, entregou a avaliação à dona Ione e foi correndo ao pátio, mas não encontrou o cão pirento, então, abriu o porta-malas, pegou produtos de limpeza, foi até ao banheiro, encheu um balde com água e detergente, voltou ao pátio, jogou a água na roda do carro e devolveu o balde.

Dirigindo de volta para casa depois daquele dia de cão, foi parado por um carro da polícia rodoviária:

- Boa noite, cidadão.

- Boa noite, oficial, algum problema?

- Nada grave, só o seu porta-malas que está aberto.

- Minha nossa! Que descuido!

- Deixa que eu o fecho pro senhor. Um minuto depois o guarda Emanoel volta zangado.

- Desça do carro, cidadão! Eduardo atônito obedece:

- O que foi agora?

- O senhor será multado por dirigir com o porta-malas aberto, e por carregar um animal doméstico nele.

- Animal o quê!!! (não preciso explicar)

Após meia hora de conversa Eduardo recebeu as multas e foi obrigado a levar o cão pirento no banco traseiro do BMW, pois não conseguiu convencer o guarda Emanoel, que era fundador da sociedade em defesa dos animais domésticos, de que não era dono do cão pirento. Enquanto era escoltado até sua casa pelo policial amigo dos animais, Eduardo mordia o lábio inferior de raiva do cão que via reinar em pose de esfinge no banco de trás da BMW. O cão mordia seus materiais de trabalho, estava com um folder à boca em que se lia em letras garrafais “DELIVERY”.