RETRATO DE FAMÍLIA

Seu Abílio acordava às 6:35h, levantava-se às 6:45h e entrava no banheiro quando faltavam rigorosamente dez minutos para às sete horas. Às 7:05h, iniciava o seu café da manhã, já apressado e um tanto nervoso, porque teria que estar inapelavelmente às 7:25h no ponto de ônibus, se quisesse chegar a tempo no serviço, ou seja, às oito horas. Disciplina de quartel e quartel britânico.

Assim vinha sendo pautada a vida de seu Abílio desde que se casara. Era metódico, ordenado, um purgante. Gostava de poucas coisas na vida: cavalos, feijão preto e livros. Sobretudo livros. Ler não lia, mas gostava deles, porque achava que lhe emprestavam uns fumos de inteligência, ares de superioridade. Usava óculos e possuía uma calva respeitável. Nunca se atrasava para nada, fosse compromisso grave ou uma boçalidade qualquer. Até para jogar dominó com os amigos na praia (seu Abílio já tinha entrado para o seleto time dos respeitáveis senhores que jogam dominó na praia), ele sempre chegava no horário combinado. “O caráter de um homem”, costumava dizer, “mede-se pela pontualidade”. E considerava-se uma grande alma.

Quando entrava no escritório, cumprimentava os colegas com um burocrático “bons-dias”, rouco e cavernoso, que dava nos nervos. Os menos espirituosos comentavam a boca miúda que quem diz bom-dia no plural ou é um chato convicto e abnegado ou tem alguma tara sexual reprimida. Isto se não possui as duas condições latentes, já que uma não exclui a outra.

Seu Abílio era chato mesmo. Daqueles que apertam todos os tomates na feira para ver qual está mais consistente. Se ia a um estádio de futebol, jamais falava termo de baixo calão; o máximo que se permitia era chamar o juiz de “churdo” e “valdevinos”. Era religioso o seu Abílio e temia a Deus. Freqüentava missa aos domingos e dias santos conforme rezam todas as cartilhas de catecismo, comungava e até dava esmolas durante o ofertório. Mixaria, é verdade, mas dava.

Um dia, seu Abílio atrasou-se para o trabalho. Oito e meia e nada dele aparecer no escritório. Nove horas… nove e meia… dez horas! Os colegas de serviço já estavam preocupados e com razão. Nunca ele tinha se atrasado em 27 anos de trabalho, nunca faltara um único dia, até mesmo doente ele não deixava de vir; do ponto de vista do patrão, era o funcionário ideal. As línguas, a postos como sempre, começaram a levantar as hipóteses mais disparatadas: “morreu?”, “não morreu?”, algum acidente fatal?”, “teria sido atropelado, assaltado, assassinado?”. “Cruz-credo!”, e batiam na madeira três vezes para isolar.

Alguém se lembrou de ligar para a casa dele e indagar à dona Florinda, sua senhora, qual o paradeiro de seu Abílio:

- Como, o Abílio não chegou ao escritório?

Dona Florinda quase teve um troço. Só podia ter acontecido alguma tragédia, e braba! Às 7:20h, ele beijara-lhe o rosto e despedira-se da mulher como costumava, dirigindo-se ao ponto. Do portão de sua casa, dona Florinda ainda o viu tomando o ônibus, às 7:25h, e acenou-lhe o braço distraída. Depois, entrou para casa e foi costurar sua vida. Era a rotina de todo dia.

Angustiada, a esposa aguardou até a hora do almoço, meio-dia e meia, quando o marido invariavelmente chegava. Dessa vez, porém, ele não chegou. Uma e meia e nada! Os ponteiros do relógio da sala eram como setas cruéis que a cada minuto vinham se cravar no peito da pobre mulher. Dona Florinda resolveu ligar para o escritório, mas lá ele ainda não tinha aparecido. Estava desacorçoada!

Ligou para a polícia, para os amigos, para a família. Em pouco tempo a casa encheu-se de gente, para consolar a esposa, por solidariedade ou mesmo por curiosidade. Dona Florinda chorava às baldadas pelos cantos, já sem esperanças de que o marido estivesse vivo. Alguns enalteciam as grandes virtudes do desaparecido, gabando-lhe a pontualidade, a probidade e, sobretudo, o imenso amor que tinha pelo próximo: “o Jesus Cristo da vila!”. Outros cochichavam ao pé do ouvido que a velha tinha se livrado de boa, já que o Abílio era o maior “cri-cri da paróquia”, um jumento posando de alazão. A maioria, porém, gostava realmente de seu Abílio e tinham-no por um homem sério, respeitador e cônscio de seus direitos e deveres para com a família e o Estado.

A tantas da tarde, o telefone chamou, abrindo um imenso silêncio fúnebre na sala e pondo os nervos dos familiares à flor da pele. “Notícia ruim chega de bonde!”, disse uma vizinha, mas ninguém entendeu direito o que ela quis dizer com isso. Dona Florinda atendeu quase sem voz, já se preparando para o pior e o coração lhe fugindo goela afora.

Do outro lado do aparelho, a pessoa rodeava o assunto:

- Alô?… É da casa do seu Abílio?… Quem fala?… Ah!, a esposa dele?… Prazer em conversar com a senhora. Como vai indo, tudo bem?… Então… nem sei como lhe dizer… sabe… é que às vezes a gente se encontra em situações que nós não esperamos, não é verdade? Pois é… então… mas e as crianças vão bem?… Então, Dona Florinda, não sei se lhe digo… é que o Abílio… o Abílio…

Como o homem não dizia nada e estava embromando, dona Florinda passou o telefone para o cunhado, que mostrou firmeza, voz grossa:

- Pode falar, aqui é o irmão do Abílio!

- É que o Abílio, meu amigo..., o Abílio, você sabe… o Abílio…

- Fala, homem de Deus!!!

- O Abílio está me devendo um dinheiro de uma rifa e eu queria saber se posso passar aí para receber! É isso.

- Ora, vá plantar pupunha no inferno!

E ainda por cima tinha dessas! “Graças a Deus, que os bondes também atrasam!”. Era a vizinha, com sua sabedoria de porta de quitanda. Foi falar em Deus e alguém se lembrou de sugerir que se rezassem um rosário. Fizeram um círculo no centro da sala e todos de mãos dadas, compenetrados, aguardavam que Dona Maria Pia, a mais beata das carolas, começasse a puxar:

- Pelo sinal da Santa Cruz…

Parecia uma macumba.

Não sei o que pensou o Abílio quando ele abriu a porta e deparou-se com cena tão inusitada e dantesca. Já cumprimentava um e outro, muito tranqüilo e formal, quando uma avalanche de perguntas, uma sobre as outras, desabou sobre o homem. Dona Florinda chorava e ria a um só tempo, abestalhada, soluçando baixinho: “Deus é Pai… Deus é Pai…”. Seu Abílio tentava se explicar:

- Tivemos de fazer serão no escritório. Ordens são ordens.

Aí dona Florinda mudou de cara.

- Como serão, se você nem foi trabalhar. Ligamos o dia todo para o escritório.

Pegara o calcanhar de Abílio. O marido, pálido, tentava torcer os fatos:

- Ah, não. O serão foi depois. Antes eu passei na casa do Alfredo, pois a mulher dele está muito doente, nas últimas.

Por azar, o seu Abílio não tinha visto que o Alfredo se encontrava ao fundo da sala e, para piorar a situação, ao lado da referida esposa, gorda e transbordando saúde. Todos olharam para a direção em que o casal estava, e foi só então que seu Abílio viu o amigo:

- Ah, Alfredo, você está aí, é?

Foi o comentário chocho que fez, mas deve de ter pensado: “grande amigo-da-onça, isso lá é hora de fazer visitas?!”.

O Alfredo, por sua vez, não disse palavra, limitando-se a um sorriso mais amarelo do que japonês com malária. Todavia, foi como se dissesse: “não me meta nas suas tretas não, violão!”.

Dona Florinda, agora recomposta e agressiva, quase apoplética, queria porque queria saber onde o marido passara todo o dia.

- Onde você esteve, Abílio, onde, criatura? E dona Florinda sacudia-lhe as mangas do paletó, vertendo sangue no olhar.

- Você quer mesmo saber, mulher, quer mesmo saber? Seu Abílio gritava enfurecido e transtornado, as faces descompostas, como nunca se lhe vira. Houve um instante de silêncio, até que o marido lançou a bomba:

- Estive a tarde toda, o dia todo com a minha amante! E daí?

Correu um “oooohhh!…” baixinho e constrangedor pela sala. Seu Abílio repetiu ainda mais alto, bem na cara da mulher, para que todos ouvissem:

- Com minha amante! E daí?

Dona Florinda correu para o quarto e trancou-se lá dentro. Ninguém se arriscava a meter a colher. Transcorrido alguns instantes, a porta se abriu lentamente, como se soprada por algum espírito gaiato e a esposa traída surgiu, etérea, com as faces desfiguradas, cabelos esparramados sobre os ombros miúdos. Trazia nas mãos um revólver e nos olhos esfogueados a sombra de Lúcifer. Já não era dona Florinda. Fez um gesto de que iria explodir o próprio crânio, mas arrependeu-se e, mirando o marido, cravou-lhe no corpo as seis balas que estavam no tambor da arma.

O enterro fora marcado para às três e meia da tarde do dia seguinte, mas só saiu às cinco. Pela segunda vez seu Abílio tinha se atrasado.

José Martino
Enviado por José Martino em 29/10/2006
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