Cansaço
Ela estava cansada. De nunca ser boa o bastante. Era a irmã mais velha, sempre alegre e e enérgica, encantava a todos com seus cachos dourados. Um dia nasceu sua irmã e ela perdeu o trono. A mais nova tinha uma personalidade forte, fazia apenas o que queria, não havia conversa e monopolizava toda a atenção. Afeto não era o forte de seus pais e o pouco que havia, tinha destino certo. Em compensação, havia muito trabalho. Sua mãe era uma dona de casa que não gostava das tarefas doméstica, então tratou logo de lhe ensinar a tomar conta da casa. Aos 8 anos, ela lavava, passava, cozinhava, cuidava de sua irmã. Como não tinha mesada, fazia compras para os vizinhos na intenção de ganhar uns trocados. Foi então que seu pai faliu pela primeira vez. Sem dinheiro para contratar funcionarios, ela que era boa em matemática, passou a ser a caixa do mercearia. Pela manhã, escola. Tarde e noite, trabalho. Aos finais de semana, fazia a feira e, após, levava almoço para seus pais, enquanto trabalhavam na "venda". Aos onze, seu pai virou taxista. A mãe professora. Passou a ter uma vida um pouco mais confortável. Como era tímida e não se relacionava bem com as meninas de sua idade, mergulhou na leitura. Na escola, era nerdizinha excluída, inclusive do grupo dos nerds, que se achavam melhores do que ela. Então passou a se relacionar com os outsiders: não usavam drogas, não eram populares, não tiravam as melhores notas e não eram os mais inteligentes. Aos 12 anos, teve sua primeira derrota, isto é, estudava em colégio público, fora convocada para participar das Olimpiádas de Matemática, mas não conseguira resolver uma questão. Entendeu, que não seria capaz de competir com outros, caso não estudasse. Deixou de lado sua paixão, a literatura, e passou a estudar matemática. Aos 13, enquanto seu pai matriculou sua irmã no curso de teatro, ela foi matriculada no curso de informática. Aos 14, ganhou uma Medalha de Prata na Olímpíadas Estaduais de Matemática, passou num colégio técnico de ponta e quase não foi matriculada, porque seu pai cismou que não pagaria a matrícula. Ao entrar no colégio técnico, se encontrou: na sala pertencia ao grupo dos nerds. Era respeitada pelos professores e tinha muitos amigos. Quase virou presidente do grêmio. Aos 16, seu pais faliu outra vez. O sonho de fazer um curso superior estava indo por água abaixo. Então começou a estudar. Duas horas por dia, era o que conseguia, pois entrava na escola às 7h e saia às 18h. Não foi aprovada imediatamente no vestibular. Após se formar, esperou arrumar um emprego, para se matricular no cursinho. Ganhava pouco e ainda contribuia nas despesas domésticas. Entrou no vestibular, mas perdeu o emprego. Sua mãe não conseguira aula e o pai, surtado, tinha feito tantas dívidas que perdera o meio de trabalho. Era um taxista sem carro. Sua mãe, uma professora sem aulas e ela, uma universitária sem dinheiro. Arrumou um namorado que não lidava bem com o fato dela fazer uma faculdade melhor do que a dele. Terminou com ele. Prestou um concurso, foi aprovada. A mãe também. O pai estava ainda mais surtado, porque perdera tudo e a chefia da casa. Ele, que era seu herói, passou a ser seu inimigo. Quanto a faculdade, nada do que ela fizesse, seria o bastante. Como concorreria com tanta gente? Mal conseguia se relacionar com as pessoas. Mais uma vez, se aproximou dos outsiders, dessa vez, de todos os gêneros, artistas, intelectuais, pseudointelectuais, nerds, pseudonerds. Mas só encontrou conforto no trabalho. Lá as pessoas tinham a mesma origem social e lhe entendiam. Quanto aos seus relacionamentos, era difícil. Ela suportava a frieza dos pais, mas não aguentava a dos namorados. Sabia como tratar cada cliente que atendia no banco, sem se desestrabilizar, mas qualquer palavra mais rude, dita pelo escolhido da época a afetava. Enfrentava os chefes com altivez, tratava os professores com desdém e se humilhava no amor. Alguns lhe consideravam forte e determinada. Mas o fato é que o turbilhão de emoções conflitantes, não lhe deixavam avançar. Era o suporte emocional da casa, a conciliadora no serviço e completamente infantil em suas relações amorosas. Não lhe ensinaram a amar, lhe ensinaram a ter deveres, obrigações e ver sempre no rosto das pessoas que amava, a insatisfação por alguma coisa não cumprida. Não tinha um lugar para estudar, pois sua mãe estava sempre aos berros, por conta do serviço doméstico. Seu pai achava que ela devia entregar o salário todo para ele administrar, porque era o homem da casa, sua irmã se preocupava com ela e seu futuro marido não estava pronto para lidar com a carência afetiva dela. Então, após consertar a situação financeira da famíia e de ajudar na reforma da casa, ela se cansou de tudo e de todos. Largou o marido, deixou de se importar com as tarefas domésticas, de contribuir com a família, entrou na academia, fez terapia, mudou de emprego, ajudou sua mãe que teve câncer, estudou filosofia, no lugar de direito civil, comprou um apartamento, arrumou outros namorados. Só então, percebeu o quanto estava cansada. Entrou em seu apartamento e dormiu por dias seguidos.