Homens do espaço
Meu quarto parecia o Alasca. Branco como a neve. O porém é que aquilo que cobria algumas superfícies dele não era nada parecido com neve. E aqui faz um calor digno das profundezas, diga-se a verdade. Pra ser sincero, meu quarto estava coberto de pó e eu voava mais alto que uma pipa.
E como não podia ser diferente, eu estava suando pra caralho. Tanto que isso me incomodava lá em cima, em sei lá que céu eu me encontrava. Tudo estava muito divertido até eu ver aquela luz. Aquela maldita luz. Nem sei como fui percebê-la de tão louco que eu estava, completamente estirado na cama.
Ela era de um azul pálido, como aquele que sai da tumba dos mortos em filmes trash de terror. Mas eu não estava morto. Ou estava? Meus olhos injetados procuravam algum sinal de vida em mim, até que olhei para baixo e me vi deitado na cama, desengonçado; uma cara louca, meio vazia.
De repente ouvi meu nome, mas não vi ninguém. Na loucura, achei que fosse Deus, mas logo ri sem nem saber que almas podiam rir. Um louco fodido como eu nunca iria para o céu. Jamais. Me preparei para ver o capeta ali, na minha frente. Ri alucinadamente com isso, num misto de pavor e alegria.
Acho que o que vi, porém, não era um demônio. Era um cara moreno, magro, que parecia ainda mais magro devido a roupa que usava. Tinha plumas por todos os cantos de seus ombros, um cinturão chamativo e eu me perguntava em silêncio porque ele estava usando aquela merda. “Para você ficar aí manjando, sua bicha”, foi a resposta automática que apareceu na minha cabeça e eu ri ainda mais.
O cara não compartilhava do meu bom humor – será que ele queria um pouco de pó? Devia ter algum em algum lugar do corpo. Descobri que ele conseguia ler a minha mente, só pelo jeito que me olhou, os olhos cor de mel vidrados em mim, os lábios, finos e secos repuxados numa evidente reprovação.
“venha”, foi a única coisa que ele me disse. Seco, tímido, o diabo que o levasse. Mas eu fui, porque já não via mais meu quarto, eu já nem sabia onde estava. Tudo preto, tudo com aquele azul pálido que foi ficando cada vez mais forte. Só aí me dei conta de que flutuava no céu e só a nave parada era a única coisa próxima de um refúgio. Onde fica a porra do fio de prata que liga nossa alma ao nosso corpo quando precisamos dele?
Eu não tinha saída. Fui pra lá e fiquei meio cego. Tudo branco, menos a maca preta e as tiras de aço dela, metálicas. E a roupa colorida do cara que agora tinha a companhia de dois cabeludos e um gigante que não demonstrava emoção nenhuma. Genial.
Eu queria fugir, mas não queria. Queria ver no que dava, pra quê? Me prenderam naquela merda de maca e apareceram uns mil aparelhos saídos dos cantos da sala e ligaram uma luz forte bem na minha cara. Filhos da puta!
Ouvi vozes falando sobre mim. Meu passado, meu presente, meu futuro. Me dissecavam como a um bicho, uma cobaia e eu podia sentir as sondas que entravam sem causar dor no meu peito. Eu não via, mas senti o capacete ligado ao meu cérebro. Quem pode parar com essas vozes? Ninguém podia. Eu tinha virado uma cobaia solitária, esquizofrênica. Mais fodido ainda que o normal.
O falatório começou a diminuir. Agora falavam que eu ficaria bem. Bem do que? Por quê? Eu gostava da minha felicidade movida a pó. Só porque rio apenas quando chapado não significa que não sou feliz. Correto?
Subitamente, tudo sumiu. Até os caras. As vozes ainda diziam que eu ficaria bem. Suspirei aliviado ao sentir minha alma caindo de novo no meu corpo. Sem fio de prata, nem nada. E tudo escureceu.
Me disseram que passei uma semana em coma.
Nesse tempo, não me lembro de ter ouvido nada, apesar de sempre ouvir dizer que os vegetais ouvem tudo o que se é falado. Recebi visitas demais para um cara tão recluso e revoltado com a vida como eu. Conto minha história e todos riem um tanto nervosos, sem acreditar: “foi só uma dose a mais”, dizem. “Vai passar, Johnny.”, falam procurando mais consolo para eles do que para mim.
O que ninguém parece saber é que tenho uma cicatriz enorme no meu peito, feito aquelas de autópsia. É delicada e parece pronta a sangrar a qualquer momento. Às vezes, ela parece prestes a abrir e tenho aquela sensação de estar sendo invadido novamente. De estar sendo lido, examinado, analisado. As vozes voltam. Às vezes, baixas; às vezes, quase estourando os meus tímpanos. E o pior é que só eu escuto.
Está tudo na minha cabeça. Tudo.
Da próxima vez que elas me ensurdecerem, eu já tenho a resposta.
Um revolver calibre.38 na gaveta ao lado da minha cama. Uma bala. É isso o que todas essas vozes vão me custar. Uma bala nos tímpanos.
Se você está lendo essa carta, é porque provavelmente isso já aconteceu.