MOLUSCÓPTEROS

Semana passada, enquanto digitava um requerimento, percebi que algum inseto chato praticava técnicas de kamikaze, voando pra lá e pra cá, batendo nas paredes da sala. Eu estava concentrado e simplesmente não dei bola para a baderna que o invasor fazia no local. Mas o inseto não sossegava.

Seu zunido começou a me irritar. Pensava no zunido como sendo uma rajada de peidos do inseto e ria sozinho. Tal conclusão fez com que o barulho me provocasse cócegas. A simples tarefa de produzir um documento comum tornara-se um tormento. Estava sendo torturado pelos meus próprios pensamentos, prestes a ter um colapso com as gargalhadas sufocantes que explodiam do fundo do meu buxo encharcado.

Fiquei zonzo. Muito zonzo. Olhei pra tela e vi uma guerra de besouros. Eles disputavam espaço em um mamão em decomposição, digladiando-se violentamente.

O 'kamikaze' pousou ao lado do mouse. Caminhou um pouco até chegar no vão entre o gabinete e o monitor. Ele fazia um percurso ritmado, ordenado, em caracol, de fora para dentro, depois dava meia-volta e fazia o percurso de dentro pra fora.

Depois de três seqüências de movimentos idênticos, resolvi encarnar o comandante daquele besouro. 'Soldado, meia volta, vooooooolver!'. 'Um, dois, três, quatro', eu enunciava cada palavra em tom bem forte, para intimidá-lo. Ele obedecia fielmente, como um personagem de videogame e isso me alegrava. Aproveitei a moral alta e a euforia para dar um grito de encorajamento aos besouros que guerreavam no monitor. Poucos tinham sobrado e nenhum deles estava inteiro. Depois da guerra pouco iriam desfrutar do mamão podre conquistado, aleijados daquela forma.

Quase esqueço do compromisso! Liguei pro Clemente para avisar.

- Companheiro, vou atrasar um pouco, paciência aí... eu preciso ver o resultado de uma guerra excitante! Imperdível! A disputa por um mamão em decomposição! Depois eu passo aí e te conto quais foram os besouros vencedores.

- ???

Desliguei rápido para não perder muito daquela emocionante cena.

Quando voltei os olhos para o besouro kamikaze, ele tinha se transformado num caramujo. Um belo caramujo! A concha brilhava como vidro escuro refletindo o sol! Corri até o banheiro, abri a gaveta do armário, peguei uma pinça, voltei até a sala e retirei o corpo mole da concha, colocando-o no cinzeiro.

Comecei a assobiar uma canção do Doors na concha. O efeito sonoro lembrava o zunido do besouro. Bom, felizmente algo do besouro ainda tinha restado após aquela metamorfose... mas a lembrança me atrapalhava. A cada sopro que eu dava na concha, eu lembrava da 'rajada de peidos' e ria muito. Quase não conseguia executar a música até o final! Tocava a música da vitória da guerra dos insetos no monitor, mas os quatro besouros que restaram ignoraram minha homenagem.

Eles estavam mais ocupados fazendo sua festa particular, desenhando seu emblema de guerra na areia, ao lado do mamão. Um deles me explicou que estavam a reproduzir o emblema, mensagem que não consegui assimilar imediatamente. Todos caminhavam com dificuldade, desenhando linha por linha com muito empenho. Depois de algumas dezenas de linhas cuidadosamente traçadas, percebi que se tratava de uma figura em espiral. Tive a certeza que se tratava da reprodução da concha de um caracol!

Fiquei emocionado com aquele fim magistral, queria até chorar! Fui para o banho, chorei embaixo do chuveiro, para poder fazer bom proveito das lágrimas e economizei água.

Ao sair do banheiro, me dirigi ao quarto e peguei a caneca não terminada de leite ao lado do meu criado-mudo. Passei pela sala, joguei mais cinzas e adoçante na caneca, olhei para os restos dos bichos na mesa do computador, lancei um beijo para eles e saí de casa assoviando, feliz da vida. Nem iria precisar ligar o som do carro para me distrair depois desta. Ainda era manhã, mas o dia já estava ganho.