Pedra e palavra

Naquela manhã eu havia acordado com “cara” de padre Antônio Vieira depois da missa. Nossa! Que confuso e pouco atraente era olhar para aquele rosto que me olhava, virado em metade céu, metade inferno. Parte divino e sagrado e pedaços corrosivos do alívio que me dava ao saber que de mim fugiam, pela cabeça e pelos pés, os meus pecados. O espelho... Ora bolas!

Lavei bem o rosto e percebi que a água havia lavado algo mais do que o sono. Foi mais ou menos entre a imagem, o secar da toalha e o reflexo, que escutei a voz: -- Claro que era. Não vistes que todas as tardes são amarelas?

Sim, era o Olavo questionando sobre o valor semântico das palavras. Encontrei-o já no corredor. Olhei e vi que só podia ser ele. Uma das mãos estava guardada em um dos bolsos da calça, o rosto era de quem queria brilho e no olhar, tinha um pretexto, igual ao que só tem quem divaga. Vinha com aquela história de que era preciso lapidar a pedra. Era todo metido a contextualizado. Meticuloso e chato. Meu Deus! Como era chato o Olavo!

Fiquei de verde a azul, de esmeralda a água marinha e respondi já perguntando em analogia: -- Assim como o Vicente não vê o amarelo de tanto gostar que tem por ele; Tu não entendes por não gostar de entender que o que eu amo é pedra lascada e não polida, pedra feito laje de calçada, quando de giz fica desenhada e quando molhada de chuva. Eu amo o paralelepípedo com todo o tamanho que tem e desencadeia. Amo a palavra crua, amo quando ela está nua. Quando lembra juta, madeira sem tinta, cor sem brilho, qualquer saudade, uma canoa só no rio, uma cabana só no universo. Sabe pedra que afia faca? Conhece Brita?

Foi em meio a essa visão distorcida e alucinada, que me preocupei pela primeira vez naquele dia, na gravidade que tinha a “cara” com que eu havia me acordado.

Já pensou se ficasse em mim, para sempre, o zig-zag de vocábulos amaldiçoados pelo padre? Muito sermão, muita dança, muita façanha e muita fachada, muito raciocínio exato, para quem da palavra só queria a palavra. Nada de caminhos nebulosos, nada de pensares esquematizados.

Mas acho, que de lá onde estava, o religioso viu, deve ter visto a minha “cara”. Ele, que para bobo não servia, deve ter notado que aquela sua conversa “sermônica” em mim, não iria render os frutos que plantara.

De qualquer forma, o escutei mais uns 15 minutos e guardei disso só o que era bonito. E o bonito disso era o que eu achava que era; Algumas expressões paradoxais que construía. Eu escutava e gostava de escutá-las. O resto eu calava antes mesmo de entrar no ouvido, antes de virar lipídeo, antes de coexistir.

Quando ia dar o primeiro bocejo dos que havia segurado no lacrimejar dos olhos, a moça aflita já entrara, já estava dentro, assim como o padre e o Olavo já estavam fora. Entrara com seus modos extravagantes e aquele seu jeito nada encabulado. Olhei para a porta e ainda tive tempo de ver a sombra do padre passando de braços cruzados por ela. Tive a impressão que rezava.

A Anita depois de enveredar para a esquerda, não parou mais de falar por um bom tempo. Eu a escutei.

Queria a todo custo, me convencer que dos vocábulos, precisávamos arrancar pedaços e em seguida ocupá-los. Pegava períodos e os agrupava. Os disseminava, os desfazia, os desvencilhava. Seu negócio era bagunçar com o que restara da pátria, da taba, do baile, da corrente pra frente que o Chico cantou.

Dizia, esbaforida, que um espaço novo tinha que ser torto, oposto, quebradiço, ininterrupto e incerto. Tinha pelo avesso de tudo, um extremado amor e um inconstante declive. Trabalhava os argumentos com os quais se mantinha, utilizando para isso todos os “ins” que descobria, que encontrava pelos cantos absolutos das suas andanças. Usava frases e formas nominais, sem pretextos, sem contextos, pura adivinhação.

Quanto ao psíquico, sei que nascia, eu não sei bem em que reta da linha, entretanto sei que investigava de tantas formas diferentes o incoerente, que trocava e acabava por tocar as imagens com as pontas dos dedos. Olhava para elas só quando se moviam, como se fossem meninos se movendo, meninos ardendo de paixão pela vida.

Que isso era lá bem bonito, isso era. Fazia encurtar o caminho que ia dar no que criava e no que jamais repetia.

Pela primeira vez naquele dia eu senti vontade de algo mais do que escutar, queria indagar algo que só ficou no pensamento: -- Qual seria a pedra de Anita?

Quando a moça partiu, eu fui até a janela e de lá pude ver, como se fossem fotos antigas no céu, o rosto de todos os personagens daquela e de outras histórias sobre a palavra e vi o que era ela para cada um. Vi o manejar desse pensar. Enxerguei as pedras.

Lembro que fechei a janela e abri a porta por onde passei destinada a encontrar a pedra branca que riscava feito giz. Encontrei-a com relativa facilidade e sem pensar fechei os olhos e corri em direção a cancha de um edifício, onde desenhei com ela, um caracol no chão. Algumas meninas apareceram e com a branca pedra jogaram um jogo de pular nas casas que eu desenhei, dentro do circular bichinho. Os incrédulos meninos ficaram a olhar. Eu, como eles, olhei-as por algum tempo e percebi que não só pulavam casas, elas percebiam as palavras e sorriam. Eu, naquela hora, esqueci de tudo que quis esquecer e sorri também. Os meninos já sorriam há algum tempo. Entendi que cada uma delas e cada um deles tinha o direito de gostar da pedra que bem quisessem e que isso era, no mínimo, genial.

Agradeci profundamente ao padre, ao Olavo e a Anita e pensei que amarelas mesmo, eram as tardes da minha infância, de um amarelo que nem mesmo Vince conseguiria retratar. Pela clareza, sei lá!

Em: 17/janeiro/2011

Tânia Fonini
Enviado por Tânia Fonini em 17/01/2011
Reeditado em 18/01/2011
Código do texto: T2735453
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