Solidão e Piedade

I

Era a reunião da família Rosa e como toda reunião de parentes havia felicidade, farpas, ironias e risos. Enquanto os adultos bebiam cerveja, as crianças brincavam no quintal. Entre elas estava Lara, transbordante em seus 13 anos de idade, com suas pequenas espinhas, seus pontiagudos seios e o desejo de parecer adulta. Ao invés de brincar pelo pequeno quintal com seus primos, estava sentada em um tijolo, recostada no muro, saboreando o livro novo que ganhara do avô. Sem mais nem menos o priminho Willian veio correndo, tinha ele 8 anos e a alcunha de mais arteiro da família Rosa, como estava absorta a leitura assustou-se quando Willian tomou-lhe o livro e saiu em disparada. Mandou ela a brincadeira de parecer adulta às favas e correu feito a criança que era atrás dele, exclamando impropérios que sabia serem a assinatura de futuras reprimendas por parte dos parentes.

Distraídos, os adultos não perceberam o fuzuê criado pelos dois. Embriagados pela cerveja não deram atenção ao momento crucial em que Willian entrou pela porta da cozinha seguido por Lara. Desde aquele dia nunca mais comprou-se cerveja ou qualquer tipo de bebida para as futuras festas familiares dos Rosas, foi totalmente creditado à bebida toda culpa da negligencia que causou o, nunca futuramente comentado, acidente.

Pois no momento em que a jovem Lara entrou pela porta da cozinha foi empurrada pelo primo, sentiu as pernas trançarem-se tirando-lhe todo o equilíbrio e buscando com os braços, inutilmente, um local para se apoiar a menina tombou. Lara tem gravado na memória, como que em câmera lenta, o breve segundo em que sentia seu corpo caindo, as mãos atacando o ar na fúria insólita de buscar apoio. Lembra-se também da maneira com que sentiu suas costas batendo no vidro quente do forno. Queria ela esquecer do instante em que, desequilibrada pela batida de seu corpo no fogão, uma enorme panela (a família Rosa possuía muitos membros) cheia de feijoada fervendo caiu sobre ela. Dor, grito e mais nada, são as lembranças que ela possui desse fatídico dia.

II

Eis que Lara acorda, mas não abre os olhos, sente uma estranheza, os pensamentos não se articulam, cenas estranhas perpassam por sua cabeça. Abre os olhos vagamente. Vê um teto que não corresponde ao seu quarto, vira a cabeça bem devagar sentindo que seu cérebro não está funcionando corretamente, como que embebido em uma espécie de latência. Quando completa o virar da cabeça, depara-se com a imagem turva da mãe. Pisca e encontra a mãe, de olhos vermelhos e inchados a chorar. Fecha-se, escuro, sente o ar penetrando em seu corpo, gelado e denso ele preenche os pulmões. Abre novamente, o pai segura os ombros da mãe e pela primeira vez na vida vê que Vicente, seu pai, está chorando. Não entende o porque da mãe olhá-la com tamanha fixidez e o pai vertendo-se em lágrimas não pousar os olhos sobre ela.

III

Tempos depois, esta novamente em casa. As mantas protetoras recobrem seus braços. Para ela aquelas mantas são uma tentativa inútil de cobrir o que lhe ocorreu. Todas as manhãs olha para suas mãos e depara-se com algo inumano, deformado.Ssuas palmas ainda estão intactas mas as costas das mãos são um composto disforme da carne como se um ser malévolo tivesse brincado com massa e formado aquela grotesca obra de arte. Pensa todas as manhãs que a mão do demônio deve ser como as suas.

Todos os dias a mesma coisa. Senta-se na mesa para o café e a mãe esboça um sorriso que para ela soa mais como a estética da falsidade, algo artificial, uma infrutífera maneira de mostrar que está tudo bem. Mas pior que a mãe só o pai. Desde o ocorrido Lara sente que ele é incapaz de olhá-la. No café, almoço ou qualquer outro momento em que ela divide o mesmo cômodo que Vicente ele se afunda no primeiro objeto a sua frente. Seja ele prato, livro, TV ou qualquer outra coisa. Lara pensa que para o pai um rato morto deve ser mais brando e aprazível que a visão da filha. Isso a assusta e mais tenebroso que so é o fato de que Dora, sua mãe, retirou todos os espelhos da casa desde a sua volta.

IV

Ainda não voltara para a escola. Mas nessa manhã decidiu enfrentar o que nem seu pai, que para ela havia sido o homem mais corajoso do mundo, tinha coragem de encarar. Esperou Vicente sair para o trabalho, a mãe como todos os dias sentada a assistir novela cochilou. Entrou no quarto dos pais rapidamente, como uma ânsia degenerativa vasculhou por gavetas e portas de armário. Até que encontrou o objeto maldito: um espelho. Encostou-o na parede e numa velocidade absurda despiu-se e viu o que, mais cedo ou mais tarde, teria de ver. Seu corpo. Contorcido. Seus ombros, braços e barriga eram um amalgama de pele retorcida. Em partes a pele era lisa e vermelha, outras possuíam uma superfície inconstante, incongruente como uma massa de bolo aerado, com buracos, fundos, esticados. Os breves seios que havia possuído eram agora duas pequenas pontas podres, sem mamilos. Talvez ela não pudesse nunca mais ser uma mulher, possivelmente não chegasse nem a ser humana. Mas de seus olhos não saíram uma lágrima, pois seu rosto era uma agressão, era ele a constituição de uma ofensa, duas protuberâncias inchadas brotavam de ambas as bochechas e em cima da testa uma fatia não existente de cabelo. Vestiu-se e com uma sobriedade paradoxal para alguém de tão pouca idade, deixou lá o espelho. Para provar aos pais que tomara conhecimento do que era.

V

Meses depois, terapias depois, resolveu-se que Lara teria de voltar a escola. Que não poderia viver trancada em casa, que não poderia fugir da vida.

Na manhã em que voltou para a escola, recusou-se a vestir roupa de frio. Recusou-se a usar um estúpido boné. Vestiu-se com se vestiria normalmente. Se a desgraça do destino havia lhe retirado o direito de ser normal, se o mundo assim como o pai desviaria o olhar dela, se os deuses jogaram nela a maldição de perder a chance de ser comum, se a vida havia espancado seus pueris sonhos de menina moça, Lara decidiu que então agrediria o mundo com sua presença. Que todos olhassem aquilo que ela se tornara.

Preparou-se para todo tipo de chacota, mixórdia, achincalhe. Entrou no carro, os olhos do pai sempre no transito, nunca nela. Mas sua gana de enfrentar o mundo foi esvaindo-se a cada metro em direção a escola, cada quarteirão vencido pelo carro era uma derrota em seu coração. Apertava-se a mochila, sentia o engasgo da fraqueza na garganta e o sal das lágrimas nos olhos. O pai distante de tudo isso, com o olhar reto no transito. O pai nunca olhava-a.

Tinha na mãe a falsidade de quem finge uma normalidade inexistente e no pai a covardia de quem foge de uma vergonha.

VI

As semanas de aula foram se passando. Sentia ódio da maneira com que a professora de história constantemente perguntava para ela se havia entendido. Mais ódio sentia da professora de matemática que sempre se aproximava dela e numa atitude plástica acocorava-se ao seu lado, tomava-lhe o lápis e auxiliava-a nas contas. Mas o mais odioso de todos era o professor de português que certa vez havia tocado em sua cabeça e brincado em seus cabelos com um sorriso. Para o inferno cheio de fogo, onde todos seriam queimados e depois expostos, como ela, em vitrines belas e cheias de neon para pessoas que passariam fingindo que eram eles normais.

No intervalo sentava-se em um banco distante, recusava-se a brincar com as meninas que a chamavam. Observava os colegas de sala e sentia inveja de Gustavo, o menino gordo, que sofria todo tipo de brincadeiras e piadas por parte dos amigos de sala. As meninas adoravam xingá-lo de bolota, bolão, banha e os meninos debochavam dele nas aulas de Educação física. Gustavo algumas vezes rebatia, outras fechava-se num bico infantil e vez ou outra chegava a chorar. Quando este chorava Lara sentia uma inveja hedionda, queria ela sofrer todo tipo de brincadeiras por ter um defeitinho qualquer. Mas isto era dádiva só concedida aos normais, ser gordo era normal, ser feia era normal e justo por isso Gustavo era alvo de achincalhes. Porque era ele normal enquanto era ela uma ofensa a normalidade. Os deboches são a coroação da normalidade enquanto o medo por parte dos outros enquadrava-a na categoria de monstro, de ser digna de pena. E mais ofensivo que a própria ofensa é a ausência desta. O dó ou a pena é a navalha mais gélida que se pode fincar no peito de um ser humano pois o calcifica na esteira das anormalidades. Queria ela que pelo menos por uma vez, ao menos, alguém olhasse a nos olhos e gritasse com toda força da prepotência adolescente “CHAMUSCADA! QUEIMADA! MONSTRINHA!”

VII

Houve então um belo dia, belo por ser diferente, por fugir a regra da vida corrompida de Lara. Belo e inesquecível por fugir do cotidiano de exclusão. O único dia na vida de Lara em que ela sentiu-se digna de usar o adjetivo BELO.

Cristina aproximou-se de Lara e entregou-lhe um pequeno bilhete. Ela agradeceu e viu que Cristinha saiu com um risinho cretino, tão cretino que Lara sentiu felicidade.

O bilhete era de Gustavo e este dizia que gostava de Lara. Esta releu mil vezes e não prestou atenção às aulas após o intervalo dragada pela idéia inconseqüente de que alguém, ao menos alguém no mundo havia se interessado por ela.

Chegando em casa correu para o quarto. Olhou-se no espelho e acreditou que não era tão aberrante sua existência, que talvez alguém como Gustavo pudesse se interessar por ela, poderiam formar um casal de excluídos, o amor daqueles que eram estranhos seria belo e puro, seria uma aliança, uma aliança contra... contra... contra tudo o que ela odiava. Com um namorado mostraria ela que possuía o direito de ser igual, o direito a não ser cercada por dó e cuidado.

Ela nunca fizera chacota de Gustavo e até certas vezes sorrira-lhe o sorriso tímido dos excluídos. Transbordou-se em felicidade, bailou pelo quarto rodopiando como uma bailarina, apertando o bilhete em seu peito no desejo de imprimi-lo em seu coração. Beijou o papelzinho como faria qualquer adolescente da idade dela. Pulou pelo quarto e sua felicidade preencheu a casa, exalou-se tanto que chegou ate o coração de sua mãe, que sendo mãe possuía total sinergia com a filha e justo por isso entrou em seu quarto e presenciou Lara a rir o riso besta do primeiro amor.

Dora pediu para ver o bilhete. Leu. Ponderou. E como toda mãe que protege a filha tomou a pior decisão que poderia.

Pegou Lara pelo braço. Entraram no carro. Lara indicou a casa de Gustavo. Viu a mãe descendo do carro andando até o portão da casa de Gustavo, batendo esbaforida, viu que a mãe esbravejou com a mãe de Gustavo, percebeu que esta pedia desculpas e percebeu que para sempre seria uma aberração presa dentro de si mesma, presa aos grilhões que impediam-na de ser feliz. A solidão verdadeira é ser alvo da piedade humana.

Luís Figueiredo
Enviado por Luís Figueiredo em 14/01/2011
Reeditado em 14/01/2011
Código do texto: T2728158
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