A Luva Negra I
Fechou o envelope. Guardou-o na gaveta com chave.
“É o fim... não há para onde fugir. Depois de tanto esperar, eu o perdi, e agora, acho que é para sempre...” pensava enquanto pegava seu casaco, seu chapéu e uma mão de luva negra. Não se viu por ali a outra mão, mas também não procurou.
Autômata seguiu até a estação ferroviária. Algum tempo depois, estava no vagão-restaurante do trem, com destino a Taica.
Pediu um café, sentou-se sozinha e começou a pensar no seu passado, na carta que acabara de receber e sua função na cidade para onde iria.
Uma lágrima rolou em seu rosto, dando um gosto salgado aos seus lábios. Sentia-se preocupada, nervosa, apreensiva. Tomava seu café para se acalmar.
Lembrou-se de dois anos atrás, quando tudo começou... Desde aquela época, muita coisa havia mudado.
Em busca de se encontrar, Carolina sofreu as conseqüências de seu desencontro pessoal. Tentou encontrar dentro de si aquela garota que tanto procurava e que agora está perdida, sem identidade, sem cara... Era apenas uma mulher tomando café num restaurante.
Sentada, chorando, ergueu os olhos em direção à cadeira em sua frente. A visão meio turva não lhe mostrava apenas um pedaço de madeira talhada, mas abria uma janela para suas memórias...
Tempo atrás aquela cadeira estava ocupada por um homem. Ele não era muito bonito, nem precisava ser. A sua beleza era interior e podia ser percebida em algumas palavras trocadas.
Sócrates, formado na faculdade de Filosofia, a conheceu naquele mesmo vagão de trem nas suas viagens de volta à cidade de Taica, onde morava.
Diariamente encontrava-se com ele e conversavam durante toda a viagem. Sem que ela percebesse, ele ia lhe ensinando mais sobre filosofia, fazendo com que ela se encontrasse.
Realmente ela se encontrou... Encontrou naqueles ensinamentos o verdadeiro motivo que lhe fazia feliz e que lhe fazia voltar todos os dias para pegar sempre o mesmo trem.
Encontrou naquele homem o que lhe faltava. Ele era o seu complemento, entretanto nunca poderiam se unir.
Estava apaixonada por um homem que lhe via como uma aluna, no máximo como amiga. Estava apaixonada por um homem que via por poucos minutos diários, e que lhe fazia pensar e refletir pelos próximas vinte e quatro horas restantes, sempre ansiosa pelo próximo encontro.
Aquelas lembranças a estavam fazendo chorar mais. Porém ela não se arrependia de lembrar.
O trem parou em uma outra estação. Algumas pessoas passaram a se movimentar por ali, mas logo tudo voltou a se acalmar.
Ela tentou se concentrar nos seus pensamentos novamente. Fechou os olhos e se voltou para dentro de si.
Começou a se lembrar da vez em que ele lhe perguntou, no meio de uma conversa, o que dava sentido à sua vida. A frágil Carolina não soube responder àquele questionamento, ou talvez tivesse vergonha: “- Eu ainda não sei” _respondeu; “- Até o fim deste ano você vai descobrir” _retrucou Sócrates com um ar de confiança nos olhos.
Carolina, ao lembrar-se deste fato, pensou novamente em uma resposta para a pergunta do filósofo. O ano estava chegando ao fim, e ela ainda não entendia o que dava sentido à sua vida.
Tentou pensar em uma resposta. Para isso fez uma lista do que realmente gostava. Entravam na sua lista os seus pais, as aulas de filosofia, o seu amigo Sócrates... Dentre essas, as únicas que lhe deixariam saudades seriam essas últimas, principalmente o seu amigo.
Pensou também que a resposta poderia estar em algo que ainda não fizera como se casar, ter filhos, viajar... Desta vez, de todas as coisas ela sentiria falta.
Ela continuava sem encontrar uma resposta concreta.
O trem parou em mais uma estação. Ela desceu, havia chegado à Taica. Seguiu seu caminho como se já o tivesse decorado. Não prestava muita atenção na rua, estava voltada para o seu interior.
Aproximou-se de uma casinha. Tornou a ver um flash em sua memória. Era Sócrates a esperando em frente àquela casa. Haviam marcado de se encontrar ali, pois ele estava meio adoentado e não poderia ir até a outra cidade.
Ela se aproximou da casa e voltou a prestar atenção na estrada. Carolina entrou na casa, estava vazia. Com poucos móveis, um quadro paisagístico na parede e sobre a mesa... a outra mão da luva.
Ela seguiu para o quarto. A cama bem forrada continha apenas um embrulho, com a frase “PARA VOCÊ”. Carolina curiosa abriu a pequena caixa. Lá dentro, uma carta e um livro manuscrito por ele mesmo. A carta dizia:
“Carolina,
Se você esta aqui é por que recebeu a carta de minha mãe. Eu, com cuidado, pedi que ela escrevesse dizendo que havia partido. Não sei mais o que ela lhe disse, mas acredito que ela fez o que lhe pedi.
A carta não mentiu. Eu estou de partida para a França, porem não sei quando volto, ou se volto, mas espero encontrá-la novamente.
Sinto muito ter te magoado. Não era a minha intenção fazer você sofrer. Hoje não tenho coragem de te encarar nos olhos e te pedir perdão.
Esta casa vai estar sempre vazia e à sua disposição. Sempre que precisar de mim, venha até aqui e leias um pouco deste livro que te deixo. Como ele, eu estarei sempre aqui, à sua espera.
Não te culpo pelo que nos aconteceu, nem espero que me culpes. O coração não obedece à razão. Enquanto o coração mandar, eu vou te amar e vou esperar todas as suas dúvidas e os seus medos acabarem.
Te amo,
Sócrates”
Carolina chorava. Sentia-se culpada por ter tido medo. Medo de encarar a felicidade.
Mas uma vez afundou-se nas lembranças... Naquele mesmo quarto, meses atrás, ela chegava para vê-lo. Ele estava ficando cada dia pior. Não conseguia mais sair de casa. Contava com a ajuda de sua mãe, uma velha senhora que não tinha forças para cuidar de si, e de sua amiga Carolina. Esta fez o sacrifício, sem medo do que os outros diriam, de passar várias semanas cuidando dele, até que melhorasse.
Mas a proximidade dos dois só fez agravar mais a situação de Carolina, que já estava no seu limite e fez de tudo, mas não conseguiu disfarçar o que sentia.
Sócrates, mesmo doente, conseguiu perceber os sentimentos dela, mas fingiu não ver. Ele realmente a via como uma amiga, mas no momento em que viu o carinho e o amor com que ela o tratava, sentiu uma forte emoção. O cupido lhe enfiou aos poucos uma flecha, até fazê-lo se apaixonar por completo, porém escondeu isso só para si.
Depois que ele já estava melhor, Carolina disse ao seu paciente que já estava perto de ela voltar para casa. Ele imediatamente disse que não fosse, o que causou espanto aos dois. –“Eu preciso de você!”, disse ele, aproximando-se dela, olhando-a nos olhos e a beijando docemente.
Depois do beijo o arrependimento. Sócrates lhe pediu desculpas, virou-se e saiu do quarto.
Carolina não teve reação em frente à cena. Tentou entender o porquê, mas não tinha um para entender: eles se amavam. Há muito tempo o brilho em seus olhos denunciava isso, entretanto ninguém quis ver.
O filósofo romântico quis se explicar: não conseguiu dormir aquela noite. Passou todo o tempo pensando no que aconteceu.
Com medo do que mais pudesse acontecer, ela voltou para a casa antes mesmo dele acordar. Neste mesmo dia, recebeu um recado da mãe de Sócrates. Ele havia amanhecido pior, com muita febre e pedia para vê-la com urgência. Carolina, mais do que depressa, voltou para a casa dele, em Taica.
Ao chegar lá, encontrou com o médico que cuidava dele ainda na sala. Ele lhe informou que o estado de Sócrates estava ficando delicado e que ele teria que ir para a Europa se quisesse ter chances de se recuperar.
Carolina foi correndo para o quarto. Sócrates estava aparentemente dormindo. Entrou no quarto e se sentou em uma poltrona ao lado da cama.
- Eu já sei que o médico falou. Disse ele, sem se mexer na cama. Eu não quero ir.
- Você tem que ir Sócrates, tem que cuidar da sua saúde.
- Eu não quero me afastar de você!
- Você não precisa estar perto de mim, eu vou estar aqui torcendo por você.
- Não, eu preciso de você. Carolina, não tente mentir para você mesma. Tanto você quanto eu sabemos o que esta acontecendo... Disse, levantando-se da cama. Eu preciso de você perto de mim.
- Não está acontecendo nada... Disse Carolina, sem jeito.
Sócrates, ainda fraco, levantou-se da cama, pegou as mãos de Carolina e a levantou, puxando-a para perto de si e dizendo:
- Eu não pensei que seria capaz de fazer isso, mas não posso mais esconder. ela mantinha os olhos abaixados Carolina, olhe para mim. Eu sei que você me ama, e eu tenho dizer: Eu também te amo.
Carolina não agüentou olhar para ele e assumir que estava certo. Com os olhos lacrimosos, saiu do quarto e da casa com pressa, deixando para trás uma das luvas.
Foi para a estação. Não haveria trem para a sua cidade nas próximas horas, e ela teria que esperar. Sentou-se, e ficou olhando os trilhos. Sentiu frio e vestiu seu casaco, no entanto não encontrou a sua luva, quando percebeu que a havia esquecido. Não voltou para buscá-la, nem mesmo olhou para trás. Ficou ali parada, olhando os trilhos, como se não estivesse neste mundo.
Sócrates a observava de longe. Sabia que estava confusa e sentia vontade de ajudá-la. Mais também sabia que ela teria que aprender a lidar com a dúvida e o medo sozinha. Como ele queria abraçá-la e dizer que ela não estava sozinha, que ele estava ali para o que quisesse. Segurando a luva na mão, ele a vigiava de longe, até que partisse no primeiro trem de volta à sua casa.
Todas aquelas lembranças em um único dia deixaram Carolina cansada. Ela se deitou e dormiu o sono dos inocentes. Sonhou! O que sonhou não difícil de adivinhar: mais lembranças de sua vida ao lado de Sócrates. Ele chegando à sua casa, com a luva em mãos, acompanhado de sua mãe e muito fraco, implorando por um minuto que fosse para lhe falar.
Ele vinha pedir sua mão em casamento. Estava preste a viajar para a França e queria levá-la consigo. Mas ela não aceitou. Carolina assumiu o seu medo e as suas dúvidas. Descobriu que o desconhecido a apavorava e que por mais que quisesse não seria capaz de deixar tudo para traz e ir a luta.
Ela o amava, entretanto a sua condição era complicada. Não podia sair de seu país, muitas coisas a prendiam lá. E também não podia pedir que ele ficasse. Precisava que ele cuidasse de sua saúde.
Não deu explicações do seu motivo para Sócrates, apenas se despediu e lhe desejou boa sorte.
Carolina acordou suada, assustada. Não gostava de lembrar de sua despedida. Arrependera-se muito depois que ele se fora, mas não podia fazer mais nada, apenas se lamentar.
Levantou-se, não estava se sentindo muito bem. Pegou suas coisas e fechou a casa. Novamente deixou a luva no lugar que estava. Ela ainda voltaria muitas vezes àquela casa. Precisava rever suas lembranças para alimentar a esperança de que seu Sócrates iria voltar curado da Europa e eles iriam se casar.
E quanto àquele envelope que Carolina recebeu antes de começar a sua viagem, eu lhe digo o que havia escrito nele:
“É com grande pesar que cumpro o dever de informá-la da perda de Sócrates, que nos deixou há uma semana, em meio às festividades da comemoração da sua despedida, nesta cidade. Falou muito em seu nome nas últimas horas. É com grande comoção que devo lhe dizer que Sócrates faleceu em 13 de março de 1877”.
Rio de Janeiro, 19/03/1877.
Dona.., Mãe de Sócrates.
Carolina voltou centenas de vezes àquela casa, leu o seu livro tantas vezes que não é de duvidar que o tenha decorado. Sempre à espera da volta de seu amado, viveu até os trinta e poucos anos.
Morreu sentindo uma grande alegria, vendo a figura de Sócrates lhe estendendo a mão e lhe chamando para ir com ele para a Europa. O corpo dela foi encontrado em um desfiladeiro... ela havia pulado para os braços de seu amado. Para os braços da felicidade.
Sabrina Souza Miranda, 19/03/2001.