O VISITADOR

Não me é forçoso recordar com toda sorte de detalhes quando chegava a época das visitações. Meu coração ficava tão aflito que parecia perfurar o peito a sair, se desmembrar de mim. É um evento que mexe com toda a gente da cidade. Meu vizinho Heitor da Bica apela para todos os santos que se tem notícia. Nunca vi um homem decorar tanto tipo de reza como ele. Acredito que os santos gostam desta bajulação porque até hoje ele não foi apanhado.

Jamais irei esquecer os dias crueis que passei sob o domínio do visitador. Terrível visitador. Com um chapéu de abas largas, marrom como meu finado cavalo Urias, o visitador tinha o dom de assustar. Parecia ungido para aterrorizar nossas pobres almas. Alto, corpulento, voz firme como um trovão, o visitador era para mim apenas um amontoado de palavras assustadoras:

- Toma muito bom conselho de querer confessar suas culpas e lhe convém muito trazê-las todas em memória para delas fazer uma inteira e verdadeira confissão, declarando toda a verdade para alívio de sua consciência e bom despacho de sua causa.

Com essas palavras, o terrível visitador, munido de todos os poderes celestiais, canônicos, terrestres e sabe-se lá quais mais, exercia sobre minha desafortunada alma toda espécie de poder. Meus pés gelavam, minhas mãos tremiam, gotas de suor desciam sob a minha testa. Sentia-me um Cristo a caminho do Calvário. Um Cristo com pecados, diga-se, muitos e escabrosos pecados.

Fato é que eu nem sabia direito porque penas eu estava ali no tribunal do Santo Ofício. Não que eu fosse um arcanjo, mas também estava longe de ser um emissário de Lúcifer a cometer torpezas e pecados. Em um primário exercício de memória conseguia trazer à tona alguns pecados, talvez graves, nenhum de ordem mortal, nenhum a me fazer candidato à fogueira. Nem à fogueira inquisitorial nem à eterna.

Como o santo apóstolo Pedro, também neguei três vezes os meus pecados. Já na conta de criminoso perante Deus e os santos, imputei mais um pecado, o da mentira, perante os homens de Deus. São duas etapas muito tensas e dolorosas, a Confissão e a Genealogia. Apresentado como um criminoso moral eu fui apresentado ao visitador e tive todo o tempo do mundo para apresentar a minha defesa.

Réu cristão batizado e obrigado a guardar os preceitos da Santa Fé Católica o fiz pelo contrário segundo meu perspicaz acusador. Meu crime, de acordo com o auto foi fazer defesa apaixonada da fornicação, mesmo sendo esta contrária aos santos mandamentos.

O visitador tinha provas incontestes de que eu, na tarde do dia 14 de agosto de 1639, em conversa da qual faziam parte Eurípedes Duarte, Jovêncio Florentino e Francisco da Silva, me jactava de deflorar quantas neguinhas quisesse e que isso não era nenhum pecado. “Não são mulheres brancas e honradas”, eu teria, desgraçadamente, dito durante a palestra. Não sei a qual dos três amigos devo matar por trazer-me até esta terrível situação.

Diante da minha veemente negativa, a qual fiz com contrição e um breve choro, foi-me imputada pena leve. Apenas alguns açoites nas minhas costas e eu estarei livre de mergulhar no terrível lago eterno de fogo. Apenas algumas chicotadas e estará extirpado da minha alma o demônio que me faz pecar contra a Santa Igreja. Se não fosse a dor que me fará gemer mais do que respirar eu sorriria feliz por não ter sido enviado a Lisboa para virar churrasco humano. Pelo menos das minhas cinzas subiria o agradável odor da Justiça até as narinas de Deus.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 05/01/2011
Reeditado em 06/01/2011
Código do texto: T2711432