SUPOSIÇÕES

Gritaram seu nome acompanhado de um adjetivo: bruxa! Ela não se ofendeu por que se ocupava alimentando os pássaros. Ela não respondeu por que era surda. Ela via os pássaros e se contentava com a aproximação, com o fato de eles comerem na sua mão. Alpiste. Sentir as bicadas de leve na palma da mão.

Abusados pássaros.

E ela não era ornitólogo, não era letrada, não lia jornal na praça como faziam os velhos da cidade todos os dias de manhã — os velhos dizendo sacanagens ao pé do ouvido por que ela não poderia reagir e, não reagindo, eles não teriam de provarem-se capazes. Ficava na praça e pedia moedas para conseguir comer, para que se compadecessem com a sua surdez, para com o dinheiro alimentar os pássaros. E, na praça, alimentava também o desejo dos velhos. Pombos ciscando o que escorre da boca dos passantes. Os passantes alimentando os pombos, os velhos e a ela com os trocados do bolso, o troco do café na padaria logo à frente.

Insatisfeito por não ter havido resposta, o menino posta-se em frente e grita novamente: bruxa! Soletra ainda: B-R-U-X-A! mas ela não ouve e ele não sabe que a mulher é surda, que se é bruxa pode engordá-lo talvez com alpiste para que, no reveillon, enquanto a cidade se ilumina de fogos, ela tenha sua ceia, um assado, um menino rosado com uma maçã enfiada na boca. Contudo, as festividades acabaram. Era hora de deglutir o ano passado.

O menino parte para os velhos chamando-os de V-E-L-H-O-S! mas estes são impacientes e tratam se tirá-lo logo da história, que já fora dedicado tempo demais às crianças, que o dinheiro do bico como Papai Noel já acabara havia dias, a barba postiça já estava guardada, enfim, o natal demoraria mais um ano para chegar, que os deixassem em paz com suas bengalas e sacanagens.

E sem o menino, sem alguém para presenciar, os velhos podiam partir para a sacanagem. Já que a mulher era surda, a natureza não teria feito mal em abdicá-la também do tato quando as mãos do velho deixassem a bengala e passassem a correr debaixo de suas pernas. Sim, porque dia-a-dia se adquire confiança ainda que incapazes. Mesmo velhos, produziam espermatozóides, mesmo velhos podiam fazer filhos; o jornal trazia esta notícia e eles acreditavam e se sentiam confiantes. Passavam a mão debaixo da saia e ela não reagia por que estava ocupava em alimentar os pássaros, em pedir moedas para o alpiste, em continuar a rotina.

Para continuar era preciso alimentar os pombos.

Mas quando os pombos abusam da confiança comendo com maior ferocidade, com muito mais vontade, muito além do que ela está disposta a oferecer, a mulher, muito ágil, esmaga suas cabeças, sufoca aplicando mais força no pulso. Depois de morto, guarda na sacola de feira. Depois de nutridos, crescidos o bastante para alimentar uma família inteira, ela vai à caça, indefinidamente continua matando, até encher toda a sacola, o suficiente para quantos filhos eu quiser imaginar.

Ocorre que, nesse ínterim, o velho não tira as mãos, não percebe que ela está caçando, que a ferocidade do pombo crescido, fizera-a ter um estalo, perceber que era hora do abate. O velho teria sua cabeça esmagada com a mesma força utilizada com o pombo, porque era frágil, V-E-L-H-O — como fez questão de dizer o menino que para não perder o dia, para não mudar a rotina e os velhos hábitos do ano passado, quando passou refazendo o caminho de casa. Este também já era. Mesmo acabadas as festividades, ela poderia comemorar. Com uma porção de crianças famintas esperando a mãe regurgitar a comida em suas gargantas, ela não poderia desperdiçar um porquinho tão cor-de-rosa como aquele dando sopa pedindo para ser assado. Então fez. Esmagou a cabeça do velho e amarrou o menino pelas patas e, na falta da maçã para lhe calar os grunhidos, enfiou-lhe algumas moedas garganta adentro. Estava feito. Era uma revanche por conta do descaso, de pensarem que era burra só por que era surda, de um mundo cruel (muito cruel, eu ressaltaria!) que não lhe dava valor apenas porque estava coberta de merda de pombos, andando naquela praça como se não soubesse o que fazia... Poderia dizer e, caso não soubesse falar, gesticular com o dedo em riste que o mundo se fodesse. Eu queria que ela dissesse.

Mas ela não fez nada disso. Talvez fosse vegetariana, talvez crianças e velhos e pombos não estivessem no seu cardápio. Quem sabe ela gostasse da rotina e por isso não queria mudar, não se sentisse perturbada com os velhos (quem sabe até apreciava) e pelo fato de ser surda a criança cor-de-rosa nem lhe chamasse atenção. A indignação pelo descaso pode ser minha, ou, quem sabe, a casa cheia de parentes durante todos esses dias de festa, velhos esparramados no sofá, crianças brincando de esconde-esconde pelos cômodos deste apartamento tão pequeno estejam me deixando louco, fantasiando situações olhando pela janela da sala para a praça deserta de mendigos, todos passando férias na praia. Com certeza sou eu. Eu poderia imitá-los alimentando pombos, passando a mão nas pernas da mulher surda, procurando o caminho do mar, mas sei que não posso, não é meu lugar. Não sou louco.

Louco é um dos parentes que vem calorosamente me abraçar. Não sabe ele que, assim distraído, pensando absurdos, absorto no absurdo das coisas, impulsionado com seu abraço adiposo despencarei da janela. “Bem feito! Nunca gostei mesmo de você”, ele disse ao me ver cair e, para se justificar, poderia dizer que eu escorreguei. São apenas suposições.

Fabiano Rodrigues
Enviado por Fabiano Rodrigues em 03/01/2011
Código do texto: T2706900