A FACE OCULTA
Magnus era uma pessoa de destaque na sociedade. Cidadão respeitado. Na sua profissão, julgava e decidia o futuro de muitos dos seus semelhantes. A respeitada família, composta pela mulher e três filhas, tinha hábitos conservadores muito severos e comportamento do início do século XIX. Ao chegar para o almoço, invariavelmente 11h35, era sempre recebido pela uniformizada empregada, que já apanhava seu paletó azul-marinho. Após lavar as mãos soltava os suspensórios, afrouxava um pouco a gravata, colocava um clássico no aparelho de som e sentava-se no sofá. Aguardava ali suas encalhadas filhas que estariam em aula de balé ou de piano.
Anita, sua dedicada esposa, habitualmente lhe trazia um suco de tomate com gelo, limão e pimenta. O cerimonioso almoço era servido pontualmente às 12h38. Na hora da frugal refeição, um silêncio só quebrado pelo leve tocar de um garfo no prato. Após, dirigiam-se à sala de estar para tomarem um cafezinho e aí sim conversavam moderadamente sobre o trivial doméstico, sempre em tonalidade baixa. Sua submissa esposa mantinha sempre em mãos algum trabalho manual.
Magnus era um verdadeiro ditador. A televisão era censurada. Telenovelas, nem pensar. Os programas culturais ou religiosos eram liberados. A distração de final de semana era sempre marcada pelo culto dominical.
À noite, se recolhiam sempre às 21 horas após uma chávena de chá de hortelã. Magnus beijava a testa de sua esposa e dizia ir ao Clube, jogar uma partida de Xadrez com seus colegas para fugir do stress do dia-a-dia. Uma rotina dos últimos dez anos.
Nessa noite, talvez impelida pelas forças ocultas, Anita resolve desobedecer às ordens do marido e liga a TV, com o controle remoto na mão visita vários canais. Acaba se encantando com a gritaria e frases de baixo calão proferidas por um famoso apresentador de programas policiais aqui do Paraná. Uma espécie de Roberto Jefferson da TV no tocante a denúncia de cafumangos sem mandato político. Nosso showman apresentava uma batida policial junto a uma dezena de travestis numa das ruas próximas da Rodoferroviária de Curitiba. Justamente na hora que a câmara se aproximou de dois veteranos gays em trajes menores, que estavam se engalfinhando, um deles arranca a peruca do outro. Anita sentiu a temperatura descer a zero grau centígrado. Gelou. Estarrecida, não acreditava no que via. Quis gritar, porém, o som não saiu.
Na telinha da TV, independente da forte maquiagem, a protuberante verruga escura, sobre a reluzente calvície de Magnus, era inconfundível para Anita.
16/4/2006 19:46:07