A Bicicleta, a Linha e a Bola

E passa a Bicicleta. Passa lenta, se mostrando muito entendiada. Resolve parar, ao notar que às suas rodas prendera-se uma Linha, dessas de pipa, bem cortante. A Bicicleta então, pergunta contrafeita:

- Que faz aí, estendida? Sai do meu caminho ou te esmago- ordenou cheia de ira.

- Desculpe, respondeu a Linha, sem jeito, não queria atrapalhar. Estou aqui, porque fiquei sem ter o que fazer. A pipa que eu prendia ficou perdida por aí, depois que eu fui cortada por outra Linha. O que me chateia é ficar aqui estirada, sem ter o que fazer...

-Você me parece aproveitável ainda, tornou a Bicicleta, após ter ouvido atentamente a resposta da Linha.

- De que acha que ainda sou capaz? A essa altura a Linha parecia ter ganho novo ânimo.

-Eu é que lhe devo pedir desculpas, disse, arrependida a Bicicleta.

- Não me fez nada, companheira. Diga-me. No que você acha que eu posso ser útil.

- É que já passei por milhares de outras Linhas, durante meu enfadonho trajeto de uma esquina a outra. Pensei em parar, ou mudar de trajeto, mas não posso controlar meu destino.

-Nem eu o meu -respondeu a Linha- Estamos no mesmo barco. Mas, afinal, aonde é que eu entro nessa história.

- Pois é. Já que estamos no mesmo barco, talvez possamos nos ajudar.

- Como? A Linha não se aguentava de curiosidade.

- Por que ao invés de prender-se a uma pipa, não tenta me deixar aqui enroscada?

- Mas assim, apenas eu saio beneficiada.

- Engano seu- tornou a Bicicleta, vangloriando-se pela brilhante estratégia- se me enroscar em você, posso ter, quem sabe, alguma chance de mudar meu destino.

Nesse exato instante, surge a Bola pipocando, loucamente contrariada pelo destino que lhe fora dado.

-Socorro, gritou desesperada.

A Bicicleta e a Linha olharam-na e entreolharam-se.

-Que se passa, amiga Bola- perguntaram simultaneamente- podemos ajudá-la?

- Certamente, respondeu a Bola, demonstrando cansaço e alívio, embora estivesse presa à roda de um carro.

- Furem-me!

- Como?! Assustadas ao perceber que a Bola pedira para morrer, paralisaram, perplexas.

- Furem-me! Repetiu a Bola, explicando em seguida:

Minha função é entreter, alegrar, marcar pontos, fazer gols. Num lugar como esse, sou usada como objeto de fuga, de uma iminente desdita que se apresenta a um povo pobre, sem futuro, fadado ao destino da pobreza material e sobretudo intelectual, sem falar do conceito de Deus, que inexiste para quem é educado pela rua. O Fracasso se camufla de várias formas. O Sucesso não surge por aqui a tempos. E o Sentido, cujo apelido é Objetivo, briga com os dois. Perdi a razão de existir.

Após ouvir o relato, a Bicicleta atropelou a Bola, estourando-a e em seguida foi presa pela Linha.

Marcello Santos
Enviado por Marcello Santos em 28/12/2010
Reeditado em 28/12/2010
Código do texto: T2696663
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.