Pobre Plebeu

Estava parado bebendo cerveja sozinho no balcão do bar, totalmente compenetrado no vôo de uma mosca enorme - daqueles tipos que sobrevoam bosta úmida de cavalo no verão e - que ia da torneira da pia para a torneira da máquina de café e de lá dava uma passadinha pelos copos e depois se esgueirava por uma pequena brecha - fruto do lapso do balconista - na estufa dos salgados e se detinha lá por longos segundos, em cima de uma coxinha feita na segunda-feira e frita na quinta-feira. Era sábado, lá pelas oito e pouco da noite e eu não tinha muito o que fazer e com quem fazer. Sentia-me abençoado por isso.

Quando por fim a mosca sumiu da minha vista - no período de tempo que compreendeu o consumo de duas garrafas e meia de cerveja - após a incursão na prateleira de frutas, foi que me dei conta de que haviam três garotas ao meu lado, tagarelando ininterruptamente e bebericando cerveja importada. Com olhar bovino, despendi a atenção, antes dispensada à mosca, a analisar minhas companheiras de balcão de bar.

A mais alta era a que mais falava e mais bebia. Tinha aquele visual meio dona-de-casa meio hippie que, no contexto urbano, ganha certo encanto. Tinha um cabelo meio crespo e cacheado, estilo black power e usava um arco vermelho acima da testa. Nem bonita nem feia; rosto normal. Detentora de lindas pernas que não parava de cruzar pra lá e pra cá. Era a única, das três, que estava sentada.

A que estava em pé entre as amigas tinha uma pele morena sedutora onde pêlos descoloridos nos braços se destacavam e causavam certo furor em mim. Também tinha cabelos cacheados que, por sua vez, desciam até o meio das costas. Era baixinha e bunduda, não largava o IPhone por nada no mundo e olhava com lascívia para um gringo que estava do outro lado do balcão.

A última, desta boêmia trindade, era a que estava mais próxima de mim. Empolgada com a conversa, acabava se esquecendo da proporção demográfica do local e toda hora pisava no meu pé e não pedia desculpas. Era branca, de lábios finos besuntados com batom vermelho, tinha cabelo liso e preto e usava um curto e provocante short jeans surrado e camisa xadrez. Tinha um rosto simples e bonito, agradável de se olhar.

Todas com sotaque de outro Estado. Turistas? Estudantes? Viagens a negócios?

- Ei, o que tá escrito aí na sua tatuagem?

Era a hippie perguntando pra mim. A do batom vermelho foi ousada ao ponto de esgarçar a gola da minha camiseta e espiar o que tava escrito.

- Tá escrito "STAY GOLD" - Falou pra amiga.

- "STAY GOOD"? - Perguntou a bunduda.

- Não, GOLD - respondi.

Debrucei a garrafa sobre o copo e esperei encher. Debrucei o copo sobre meus lábios e esperei esvaziar. Fiquei esperando alguma coisa acontecer.

- E qual é o significado dela?

Era a do batom. As outras duas falavam no celular.

Expliquei, por cima, o que a tatuagem significa. Ela pareceu ter gostado do significado.

- Você fuma? - Perguntou.

- Não - respondi.

- Ai, vem comigo aqui fora? - Pediu - Preciso fumar!

Antes que eu pudesse formular uma resposta, ela me puxou pelo braço até o lado de fora. O bar ficava numa esquina bem movimentada e a calçada estava relativamente apinhada. Fazia calor. Ela meteu o cigarro num canto da boca e sorriu pra mim com o outro canto e acendeu o bicho. Deu a primeira tragada com os olhos semi-cerrados e soprou a fumaça pro alto.

- E então, o que me conta? - Perguntou.

- Nada de relevante - Respondi.

- Eita - Tragou. Soprou. Perguntou:- O que você faz da vida?

- Nada... Quer dizer, ultimamente, nada!

- Hmm - Resmungou enquanto tragava a morte. Soprou a vida pro alto e disse:- Gostei de você!

- É!?

- Sim, você não me olha como quem quer me comer.

- Não ocorreu pra você que eu posso disfarçar bem?

- Você quer me comer?

- Não seria má idéia...

- Por quê?

- Faz tempo que não transo, sabe?

- Quanto tempo?

- Muito tempo.

- Uma semana?

- Não, um mês - Menti. Bebia no período refratário, praticamente, mas ela não precisava da verdade. Sequer sabia seu nome, caralho!

Deu uma última tragada e jogou a bituca no chão. Pisou em cima da bituca com muita classe. Voltamos pra dentro do bar.

- Ei amigo - era a hippie - qual é o teu nome, mesmo?

Respondi. As apresentações foram feitas.

- O que o menino de ouro vai fazer hoje?

- Ir pra casa dormir. E vocês?

Consternação geral.

É terminantemente fora de cogitação mencionar as palavras "dormir" e "cama" no sábado à noite. Corre-se o risco de ser chamado de "velho", "morto" e de ganhar uma profusa cascata de sermões, frases e semelhantes e dispensáveis adjetivos, além de uma lição de moral totalmente desprovida de inteligência e da empáfia e profundidade necessárias e suficientes para que essa predileção pela noite de sono seja subvertida pelo notívago bundear ; pequenos detalhes que, em suma, só apressam e aumentam a minha vontade de babar no travesseiro.

Como estava calejado com tal reação - já que são quatro/cinco sábados por mês -, esperei a celeuma cessar e quis saber o porquê da pergunta.

- Vai ter uma festa aí da amiga de um amigo nosso. Vem com a gente? - Disse a bunduda.

- Será?

- Vai ser bacana, o pessoal é super de boa - Disse Camila, a dos cabelos lisos e pretos - Vem?

Senti cheiro de furada no ar.

Manoella (a hippie) guiava o carro enquanto Luana (a bunduda) sincronizava seu IPhone no/com o aparelho de som. Camila e eu estávamos no banco de trás, afastados, cada um mergulhado em seus próprios pensamentos. Ou na falta deles, no meu caso. Eu ainda tentava entender como uma garota de 20 anos tinha um A3 do ano todo completo e blindado. Dado momento, Camila olhou pra mim, sorriu e enfiou o indicador num furo da minha calça e falou:

- Gostei desse furo, é diferente... - Alargou mais o sorriso - Você quem fez ou é de fábrica?

- Eu que fiz - Sorri.

- Massa! Como?

- Deixando o Bilhete Único no bolso a semana inteira - sorri como se não houvesse limite labial - Sabe, só tenho essa calça e ando uma meia hora por dia até o ponto de ônibus e - Fingi um pigarro, típica pausa dramática do mestre de oratória para organizar os pensamentos que precedem a revelação mais excitante de uma palestra -, com o tempo, a ruptura dos tecidos que culminaram nesse buraco foi natural - Concluí.

- Ah, entendi - Disse com ar reticente e sorriu amareladamente, voltando àquele estado taciturno de quem começa a sentir pontadas de remorso.

Cruzei as mãos atrás da nuca, recostei no banco e fechei os olhos.

Acordei deitado no banco. Levantei. Carro vazio. Coração acelerou. "Aonde foram aquelas putas?", pensei na névoa do sono entremeada a uma sensação de perigoso abandono. A névoa se dissipou segundos depois, ao ver que estava no estacionamento de um mercado típico de gente cheia da grana.

Acompanhei (com o olhar) as três mosqueteiras saindo do estabelecimento empurrando um carrinho contendo alguns engradados de cerveja em lata e vários pacotes de salgadinhos, batatinhas chips e amendoins. Sorri.

Dessa vez, Luana assumiu o volante. Eu não conseguia confiar nela por causa daquelas perninhas curtas e daquela fissura no celular. Mas a menina guiou o carro com maestria e logo estávamos dentro do estacionamento de um prédio enorme locado no Higienópolis. Pelo que eu havia entendido, elas tomariam banho e trocariam de roupa e esperaríamos uma galera maneira para então irmos à festinha. Subimos quatorze andares de elevador, carregando os engradados e salgadinhos. A coisa toda me soava estranha. O elevador dava direto numa porta com o número 385. Manoella sacou um molho de chaves e abriu a danada.

- Douradinho, você pode abrir um engradado desses e colocar as latas no congelador enquanto a gente se arruma?

- Claro.

Fui até a cozinha. Rasguei o engradado, molhei as latas e fui colocando no congelador. Um congelador enorme. Uma enorme geladeira prateada que deveria custar milhares e milhares de Reais. Havia uma garrafa de Jack Daniels ali perto. Apertei um botão que fez com que pedras de gelo caíssem dentro de um copo que continha um pouco do drink do Seu Jack. Sentia-me em casa. Subi um lance de escada e caí numa espécie de estúdio, todo amadeirado com telas penduradas, poltronas de couro negro e puffes coloridos e um cavalete armado. Corri uma porta de vidro e me deparei com uma vista de tirar o fôlego.

Que porra que aquelas três perderam naquele boteco sujo?

Debrucei no parapeito e fiquei olhando os carros ao longe, percorrendo a Marginal Tietê...

(Continua)

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 27/12/2010
Reeditado em 27/12/2010
Código do texto: T2695038
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