Primeira Página.
Cotidiano era o nome do homem.
Diariamente ele limpava o solado dos sapatos de bico arredondado no velho capacho aos pés da escada. Dezessete degraus de pedra rajada o separavam do augúrio matinal que tanto o desiludia.
Às vezes, Cotidiano sentia raiva. Imaginava até mesmo que a humilde mulher cuja função lhe causava irritação poderia facilmente lhe provocar danos físicos. E provocava.
Calamidade era o nome da mulher.
Uma senhora corpulenta a quem ele nunca vira sorrir. No entanto, ela gritava. A voz estridente que saia da boca margeada por profundos sulcos precisava ser ouvida. Calamidade trazia em um dos braços fofos um maço de jornais cuja primeira página ficava voltada para aqueles que passavam pela roleta da Estação de ônibus.
Ela parecia não se importar com as notícias que repetia de forma automática. Precisava vender os jornais e não havia outro jeito conhecido. Vez por outra Calamidade se lembrava de mencionar as promoções que o folhetim oferecia para aqueles que o adquirissem.
Quantas vezes por segundo Calamidade era capaz de repetir o preço do produto? - Cotidiano se perguntava com freqüência. Assim como também se perguntava o porquê de tamanha insensibilidade.
Todos os dias ele passava por ela e a ouvia repetir sem qualquer sentimento expresso naqueles olhos de jabuticaba madura, as tragédias da primeira página. Calamidade as esfregava na cara mal-dormida dos transeuntes sem qualquer cerimônia.
Cotidiano começou a imaginar facetas diversas. Em uma de suas “viagens” pelos campos fartos da imaginação, cogitou ser a simplória vendedora membro de alguma organização obscura. Calamidade fora plantada naquele lugar de forma estratégica. Ela não sentia frio, fome, e não se importava realmente com a venda dos jornais. Seu real objetivo era espalhar a discórdia sobre a Terra. Devaneios de Cotidiano. Enquanto Calamidade trabalha, o homem de imaginação sem limites a observa em meio à multidão que atravessa a roleta.
Certa vez, em uma de suas manhãs mais estressantes, Cotidiano, no auge de sua indignação, resolve abordá-la. Calamidade havia acabado de repetir a fatalidade que fora estampada em letras garrafais na edição de sexta-feira quando sente um dedo grosso cutucar-lhe o ombro esquerdo. Ela se vira e Cotidiano a encara com olhos arregalados. Alguns segundos de silêncio, e ela pergunta se ele gostaria de levar um jornal.
- Não quero seu jornal.
Calamidade não entende a rispidez da negativa. Afinal de contas, ele a cutucara para que?
Cotidiano engole seco e se prepara para despejar o discurso ensaiado minutos antes, quando ainda subia os degraus. E então ele começa.
- Todas as manhãs eu a vejo encher a boca com orgulho, e proferir sem nenhum constrangimento essas notícias horríveis que atraem a massa ignorante.
- Massa ignorante? - A humilde vendedora sacode a cabeça confusa.
Cotidiano respira fundo e continua impaciente.
- O povo! A tragédia gratuita atrai o povo.
- Sim. Eu preciso vender jornais. É o único jeito.
Calamidade se volta para umas das roletas do Terminal e começa a repetir a promoção do dia.
Mas o homem não se dá por satisfeito.
Outro cutucão. Dessa vez mais forte.
- O que o moço quer? Vai levar um jornal ou não?
- Já disse que não quero seu jornal.
- Então dá sossego. Está atrapalhando...
Cotidiano molha os lábios com a língua antes de retrucar.
- Preciso entender.
-Entender o que moço?
-Porque a senhora não se sensibiliza com o que lê? Porque precisa esfregar na minha cara tanta tragédia todas as manhãs?
Calamidade inspira o ar calmamente, o peito inflando sob a camiseta amarela.
- O que está escrito aqui?
Ela estende o jornal para que Cotidiano leia a notícia.
O Homem vacila por um átimo, mas acaba cedendo quando a senhora repete a pergunta.
“Menino de 14 anos é arrastado pela correnteza durante o temporal que castigou a cidade na última madrugada”.
- Você conhece esse menino?
- Não. - Responde o homem.
- Nem eu. – A mulher dá de ombros e continua – Não é meu parente, vizinho ou conhecido. Eu nunca ouvi falar.
- O que a senhora quer dizer com isso?
- Quero dizer que não somos nós aí.
Cotidiano ergue as espessas sobrancelhas aturdido.
- A manchete de ontem trouxe o caso de uma velha que foi espancada até a morte por um ladrão. O vagabundo só levou o botijão de gás.
- E a senhora não se importa?
- Claro que sim! Mas não fico me lastimando quando posso agradecer por estar viva. Eu não estou na primeira página. E nem você.
Cotidiano respira meio abobalhado. Em um primeiro momento, pensou ele que a indiferença de Calamidade era muito maior do que o mesmo havia imaginado. Mas a vendedora pareceu não perceber a expressão frouxa no rosto do homem que a julgara.
- Todos os dias antes de começar a vender os jornais eu leio a notícia principal. Às vezes me dá uma tristeza tão grande que penso como posso viver num mundo onde tem gente que é capaz de matar por um botijão de gás.
A essa altura Cotidiano não sabia o que dizer.
Calamidade dobrou o jornal e fitou o homem que a encarava mudo. Ela reparou que Cotidiano usava sapatos de bico arredondado. Percebeu também que o homem trazia em seu peito um fino cordão de ouro com um pequeno pingente, uma medalhinha de São Judas.
- Porque a primeira página te incomoda tanto, moço? É só notícia. Lá fora as ruas tão cheias de gente vivendo a verdadeira tristeza.
- Verdadeira tristeza? - Cotidiano a indagou.
- Isso aqui - Calamidade folheou o jornal – é só um resumo do que acontece por aí.
O homem franziu o cenho e se deu conta de que estava recebendo uma lição de moral.
- Essa vida é engraçada moço. A noite eu rezo pra Deus. Peço pela minha família e espero que nunca ninguém apareça no jornal. E tem gente que sonha em ficar famosa a qualquer preço. Mas se você faz tanta questão de se incomodar com alguma coisa, esquece o papel e repara no povo à sua volta. Olhar pras pessoas que ficam na porta do Terminal pedindo esmola já é um começo...
Calamidade soltou um suspiro e sorriu meio sem-graça. Depois, voltou-se para a multidão e recomeçou seu trabalho.
O gato comeu a língua do homem que tudo sabia. Ou pensava saber.
Calamidade não era realmente o nome da mulher, mas apenas uma forma obtusa que Cotidiano encontrara para se referir ao suposto martírio que enegrecia suas manhãs. Como também era obtusa sua visão das coisas.
Ele passou a ignorar Calamidade. Não lhe dava ouvidos. Contudo, intimamente pensava ele que a vendedora de jornais, em uma tentativa genuína de sobrevivência, havia encontrado um jeito de ser feliz.
Em um primeiro momento, pensou ele que a indiferença de Calamidade poderia feri-lo fisicamente. Mas ela não era indiferente ao resto do mundo, apenas não desejava ser notícia. Não desejava estampar as páginas de um jornal que se torcido, poderia render algumas gotas de sangue. Sangue das vítimas banalizadas pela tragédia cotidiana.
Pensou Cotidiano que o semelhante fosse indiferente, mas acabou descobrindo que a indiferença estava em si mesmo.