O bom velhinho

O Bom Velhinho

Baixinho atarracado, pele clara, grisalho e calvo (os cabelos que faltavam na cabeça, sobravam no torso), barriga saliente, costas côncavas, aproximadamente 1m 55, andar arqueado como se estivesse empurrando algo à sua frente. Possuía uma destreza descomunal para sua idade: 70 anos. Muito embora, a jovial aparência física não deixasse transparecer as sete décadas vividas.

Capitãozinho era o protótipo do velhinho perspicaz. Os amigos gostavam de surpreendê-lo para cutucar-lhe e saltar fora. Porque arisco feito gazela assustada e “valente” como vaca recém-parida protegendo a cria, ele se voltava para o brincalhão, desferindo safanões e pontapés a torto e a direito. O porquê da alcunha pela qual ficou conhecido ninguém sabia explicar. Nem ele fazia questão de tornar público.

A forma diminutiva do apelido não era expressão de menosprezo a sua pessoa, mas uma deferência carinhosa à baixa estatura. Suspeitava-se ter sido ele um militar desertor e o vilarejo de Pimenteira, seu refúgio seguro. Mas eram só suspeitas. O apelido lhe era tão peculiar que jamais alguém atinava indagar sobre o verdadeiro nome.

Levava uma vida pachorrenta na sua bodega, à espera que – de caju em caju – aparecesse algum cristão para beber um trago das especialidades da casa: diversas cachaças com folhas em infusão, emoldurando as prateleiras mofentas e cheias de teias. Talvez aí residisse a razão de sua grande agilidade. A energia acumulada durante esses longos períodos de pura “paciência”.

O misterioso velhinho só saía da inércia do dia-a-dia de sua bodega quando chegava aos seus ouvidos a notícia do passamento de alguém, conhecido ou não, nas cercanias do distrito. Aí ele se arrumava todo, como noivo em preparativos para o casório. Vestia a melhor beca e se matinha impaciente até que o cortejo conduzindo o esquife passasse em frente ao seu ponto comercial para acompanhar.

Que boa alma! Não lhe importava se o falecido era adulto, criança, qual o sexo ou grau de parentesco. Avançava na alça do caixão, tomando-a do sujeito que a segurava e, felicíssimo como se tivesse conquistado um valioso troféu, ajudava a conduzir o ataúde até o cemitério.

Algumas vezes quando não era avisado antecipadamente da ocorrência de algum óbito ou que, por qualquer outro motivo se encontrasse absorto, ao pressentir que algum séqüito passava em frente ao seu estabelecimento comercial nem se dava ao luxo de correr até a portinhola do balcão para destravar o ferrolho.

Rapidamente saltava como se tivesse dez anos, ganhava a rua e, imediatamente, substituía um dos carregadores do esquife, o qual agradecia penhoradamente à gentileza, visto que descansaria por alguns instantes daquele pesado ônus carregado. Seu rosto irradiava um quê de inebriante satisfação pela prática do ato humanitário. Seguia tão integrado ao cortejo, chegando a ser confundido com familiares do sepulto.

Este foi o bom velhinho que conheci. Se algum dia ele foi realmente um desertor levou consigo tal segredo. E se em sua existência perpetrou mal a alguma pessoa, na prática vezeira do nobre e solidário ato de acompanhar cortejos fúnebres deveria estar pagando a sua penitência. Acompanhar funeral era o de que ele mais gostava. Era o seu hobbie predileto.

Até que, num belo dia, o Onipotente o chamou para assessorá-lo nas tarefas celestiais. Solícito, como sempre fora em toda a sua existência, não pestanejou em aceitar o chamamento superior e, num lance de mal súbito, apresentou-se de corpo e alma ao Pai Eterno.

Poucos amigos velaram-lhe em sentinela; alguns apareceram mais interessados em beber o morto, nos muitos goles de cachaça tomados durante toda noite de vigília. Outros, em cafezinhos e biscoitos. Nestas horas se descobre quem são os verdadeiros amigos.

Para conduzi-lo a sua última morada, a custo, apareceram quatro viventes. Justamente no seu enterro. Ele que em vida nunca deixou de pegar, literalmente, numa alça de caixão e acompanhar o féretro até o ato final do sepultamento. Nunca dando a tarefa por concluída antes de jogar alguns punhados de terra sobre o caixão quando este baixava sepultura, fosse quem fosse o falecido.

Lá em cima onde hoje vive, deve ter feito muitas queixas ao Pai pela imensa ingratidão aqui sofrida junto aos humanos. Mas não há de ser nada não, meu bom velhinho! A balança está pesando mais para o lado dos seus bons atos aqui praticados. Por isso, espero que você tenha sido dignamente recompensado pelo Onipotente.

A vida nos reserva estas e outras surpresas seu João Amaro.

E, daqui, torço por você.

Valmari Nogueira
Enviado por Valmari Nogueira em 19/12/2010
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