Carminha

As pérolas falsas rolaram pelo chão de terra batida e só o espelho viu duas lágrimas grossas deslizarem pelo rosto impassível de menina. O batom vermelho agora era só a lembrança dolorosa de uma vida que se escondia na curva do caminho.
O sorriso de Carminha era medonho enquanto lançava ao chão os cachos de cabelos negros que ele tanto elogiava. Aproveitava à exaustão a chegada da liberdade. Pedaços de vestidos ao pé da cama emaranhavam-se num carnaval de cores, mas o rosto dela estava pálido e os seus olhos não tinham mais luz. Carminha lembrava-se de quando ganhara cada um. A mãe, recolhida ao pé do fogão, observava em silêncio o papel reluzente que deixava entrever a seda branca, o verde linho ou a camisola vermelha que a filha usaria na dor imensa da noite. A mãe já não vivia. Era um corpo que se movimentava conforme as necessidades da casa, cadáver ambulante envolto em farrapos, preservado apenas por mágoas. Desde que se casara era vítima das agressões físicas e psicológicas do marido, homem que só vivia para o seu gado e morria por sua filha Carminha. Na primeira noite que ele foi ao quarto da menina, então com oito anos, ela acordou com o choro sufocado e levantou-se para ver se a filha estava passando mal. Foi quando viu aquela cena absurda e, como num transe, voltou à sua infância, sentiu aquela mão calejada apertar sua boca miúda enquanto aquela coisa rasgava o seu ventre como um punhal de fogo. Foi naquele instante que ela começou a ouvir a voz de Deus. Era como um trovão quebrando longe, e ela entendeu tudo. Aquilo estava acontecendo para que sua mãe fosse poupada daquele sofrimento. Como era bom salvar sua mãezinha!
E ela se calou. Pensava que continuaria calada para sempre. Foi quando chegou da novena que passou pelo quarto de Carminha e viu a luz do candeeiro acesa. A noite estava muito fria, demais para aquela época do ano.
Não soube de onde veio aquela dor. Era um bicho sem dentes roendo o seu coração. Carminha pendurada no armador. Não. A carinha roxa, era um pesadelo. Não. A cabecinha tosquiada pendia para um lado. O nó na garganta da mãe não era igual ao nó que abrira aquele buraco no pescoço da sua Carminha. não era mais um buraco, era uma boca vermelha escancarada que gritava “mãezinha, mãezinha, por que você me matou?”
Primeiro foi o enjoo. Um bolo no estômago que foi subindo e saltou da garganta num uivo, um berro, um urro animalesco.


(Este conto, que é por mim especialmente querido, conquistou o 9º lugar no prêmio Rachel de Queiroz 2010, promovido pelo Ideal Clube de Fortaleza/CE.)
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 17/12/2010
Reeditado em 07/06/2015
Código do texto: T2677926
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