CUIA D'ÁGUA (capitulo 02)
Capítulo dois: Dos Acontecimentos.
Diariamente embalados pelo vento da madrugada, espalhavam-se eles como um desabrochar de Tamba-Tajá. Vinham de diversos cantos da cidade. Era bonito de se ver, pareciam promesseiros transbordando oferendas para algum santo. Caminhavam lentamente, ainda sob o efeito de bolhas de sono, embebes por um transe sereno e gentil. Executavam uma coreografia de comum acordo de todos que surgiam das penumbras. Montavam suas barracas de feira.
Epidemias coloridas, o alaranjado e enrugado ouro desfolhando-se novamente – um sol parido da manhã. Seus raios preguiçosos vazavam calor e movimento ao caminhar crescente junto aos paralelepípedos da Castilhos França e arredores da feira do Ver-O-Peso. Todo tipo de homens e mulheres traziam seus pregões, na esperança do ganha-pão de cada dia.
Eram os feirantes. Os pescadores. Ferreiros. Sapateiros. Carroceiros. Frutas. Legumes. Jarros e garrafas. Pimenta de cheiro. Pimenta do reino. Farinha d’água. Cachos parrudos de açaí. Paneiros. Cerâmica marajoara. Caixotes arregalados de limões. Anéis de latão, cordões, brincos de vidros coloridos que alegravam o coração das mocinhas em idade vaidosa. Tantas e tantas mercadorias outras que se possa imaginar.
Até leitões vivos dialogavam aos berros, de igual para igual com todos que ali estivessem! E sem essa balburdia de falatório embriagado de sons, cheiros, cores, gritos, sorrisos e malandragens, não existiria o corpo taludo da feira, e sem esse corpo não haveria também a alma irrequieta do Ver-O-Peso na pessoa de seus freqüentadores.
E ao calor do sol desamarrotado, tudo ganhava graça e movimento numa saturação de matizes e gestos. À medida que a quentura roçava àquele lugar, aumentava também o som da orquestra: vozes e estrondos de caixotes jogados no chão; tilintar de facões decepando corpos de peixes; ressonar de carroças passando; chinelos arrastando-se em pegadas fumegantes. Tudo tinha ali para todos.
Acordes crescentes de um Altino Pimenta, a música da feira era regida por uma batuta cabocla e invisível... Minúsculos carimbós amorenados nas ancas carnudas das moças paraenses torciam os pescoços masculinos que por ali passassem – uma vertigens de jambú... Era assim a invasão da melodia vespertina, todos os dias na maior feira da América Latina.
Tudo começava a ganhar jeito por volta das quatro da matina. Aos olhos de quem estivesse fora daquela rotina dramaticamente espetacular, o que se via era uma pintura caprichosa, dinâmica, dolorosa e desordenada, embriagada de odores definitivos e exclusivamente nortistas, cores explosivas e sotaque paraura ainda escutado nos dias atuais.
A vida movimentava-se num ritmo único e circular. Um Lundum, um Siriá ou talvez um carimbó. Gestos misteriosos cortejados por uma neblina úmida de rio, com o sabor e suor marimbondo. Vidas entrecortadas – um clima místico e envolvente, um sagrado-profano ao parto majestoso e doloroso daquele lugar mágico e úmido, a feira parindo-se todos os dias através das mãos dos feirantes.
Os primeiros a desaneblinarem-se do transe preguiçoso da noite, eram os pescadores. Muitos dormitavam no próprio barco ancorado aos cais. Os caboclos saiam de suas naus carregando um silêncio religioso, como se realizassem uma prece de gestos. Mal se falavam, comunicavam-se através do olhar e das intenções. Tratava-se de uma compreensão diferente, como o influxo e refluxo das pequenas ondas enamoradas do cais.
Alguns cabras passavam a tarde e metade da noite pescando motivados a venderem o resultado das redes, na manhã seguinte. Os náuticos homens manobravam os caixotes pitiús, jogando os peixes macerados na pedra e os banhavam para estarem sempre fresquinhos ao julgamento e olhos atentos do freguês.
Seguidos dos peixeiros, chegavam os pequenos donos de barracas. Alguns mais caprichosos, forravam o tabuleiro com jornal “A Província do Pará” ou com “A Folha do Norte”, antes de deitarem as frutas.
Sim! O zelo dos feirantes é para o agradamento do freguês. A exigência deste era tanta, que os legumes vinham organizados por cores, tipos e tamanhos. Aos olhos do consumidor, as mercadorias gabavam-se como bandeirolas coloridas e sorridentes.
Na parte mística da feira – estavam as famosas “garrafadas”; as ervas milagrosas; olho-de-boto; defumações para todos os gêneros e gostos (e problemas...); amuletos benzidos, compotas, etc. – neste beco de feira também havia uma maneira de se apresentar as mercadorias. A ordem dos produtos vinha do menor para o maior em termos de importância. O freguês muito necessitado do poder místico, perdia-se por entre as barracas de ervas, que por vezes lembravam um pequeno território da selva Amazônica (cheiros, cores, bichos, mistérios...). Tudo ali era feito discretamente, à surdina da investigação de boca em boca. O sigilo continua sendo a alma dos negócios...
Às sete da manhã a feira já está em sedas e toalhas quentes, toda prontinha, aguardando as mãos e os olhos da freguesia sobre si: vovós e vovôs. Adoram madrugar para serem os primeiros a pisar naquele solo sagrado e falador. As últimas notícias sobre tudo e sobre todos da cidade, se fazia conhecer primeiro naquele lugar e por aquelas bocas...
”Esse quiabo não está bom!”
“Queres me roubar no preço! Olhe, veja só!”
“Menina... a dona Zulmira não pegou a afilhada em semvergonhice com o Matias ontem, atrás da cortina da sala...”
Mesmo parecendo agressivo para um voyeur desavisado, tudo não passava de um teatrinho de comum acordo entre feirantes e velhos fregueses de longa data. Boas relações de amizade e confiança.
Caro leitor, caro leitor... as relações humanas são cheias de mistérios que a selvageria pré-histórica deixou fossificada na modernidade. E o que parece antipatia, trata-se na verdade, da manifestação de carinho e reconhecimento da existência do outro. Viver moldado em uma sociedade civilizada requer muito trabalho mental e raciocínio – um teatro de caras e bocas. A comunicação humana vai além das palavras, é algo quase incompreensível e inacreditável – a civilização!
Igualmente no meio da turba, todos os dias o punguista profissional Cesário passeava pela feira, pronto para começar seu trabalho de observação.
“pegaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Aquele cabra ali roubou minha carteira!” E uma cobra de rabo se formava, vários caboclos agindo em favor da vítima, correndo sofregamente: “Lá vai ele... pega, pega, pega, olha aí, olha...” – mas ninguém conseguia pegar o malandro. Este se enfiava por entre as barracas, abaixava-se por detrás dos passantes, dava meia volta, volta e meia, entrava num buraco qualquer. E só era visto novamente passados uns dias. Os policiais não podiam fazer nada. Nunca pegaram Cesário. O sujeito continuava em sua lida diária,trabalhava duro...
Um dia Cesário estava num canto ao paredão do Mercado de Ferro. Suas grandes orbes acompanhavam todos os lances dos transeuntes desavisados. Os olhos do ladrão até pareciam independentes, como os de um camaleão. Era assustador a perspicácia daquele bandido. Até então, nada conseguia tirar- lhe de seu ponto de equilíbrio...
“Que anjo lindo... simplesmente lindo...”.
Era mesmo uma beleza selvagem e inocente, sensual e provocante. Cesário foi invadido por um sentimento visceral, arrebatando todas as correntes que amarravam seu coração pantanoso de raposa. Como uma navalha afiadíssima, rompeu um corte fatal no interior do golpista, que nem ele mesmo se apercebera... jorrava um desespero de não saber o que estava acontecendo dentro de si. E ao mesmo momento em que o ladrão era invadido por tais sentimentos desconhecidos, um prego enferrujado rasgava a pele de seu dedo. A mão de Cesário escapava para junto de um caixote adormecido no meio das frutas, “ai cacete...”. Num relance desviou os olhos de seu anjo. Quando voltou seu rosto amarelo e sem vida alguma em busca da moça, não havia mais nada. A partir daquele momento Cesário perdeu todos os sentidos. Enlouquecera de paixão por aquela garota.
“Quem é ela? Preciso saber.”
*o restante da leitura continua aqui:
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