Toque de silêncio
- Carregar! – Berrou o comandante em posição de sentido.
Os seis infantes apontaram o fuzil para o chão em sincronia.
- Apontar!
Os fuzis em riste em véspera de disparo.
- Fogo!
Os seis disparos espocaram concomitantemente.
Lá estava eu, enterrando um amigo. Ao meu lado, a mulher enterrava o marido e as duas crianças agarradas à saia dela, sem entender muito bem o porquê daquilo tudo, enterravam um pai. Cada um ali enterrava alguém diferente. O amigo, o irmão, o pai, o companheiro de cerveja, o companheiro de patrulha... Dentro do caixão coberto pela bandeira nacional jaziam todas essas pessoas, inertes e silenciadas.
Um cabo, empertigado e em posição de sentido, sacou a corneta e iniciou o toque de silêncio.
A melodia adocicou a tarde com suas notas lentas. A natureza, como que em obediência aos acordes, silenciou-se também. Cada lembrança, cada momento. Conheci-o no colégio militar, vinte e dois anos antes, não imaginando que nossa amizade fosse sepultada daquela maneira. Todos os sorrisos, todos as lágrimas, todos as brigas. Os sábados de futebol.
Toque de silêncio. Nada é pior do que silenciar uma amizade tão antiga e enraizada. A música-lâmina, ceifando esperanças e o futuro.
As bochechas do cabo estufavam-se e a corneta em seu lamento roufenho profetizava a ausência. Não haveria mais aquele pai, amigo, irmão, companheiro em seu lugar de pertença e direito. Só haveria a ausência, a substituta dos órfãos. Militares em posição de sentido diante do ataúde. Alguns derramavam lágrimas. Outros a continham com impenetráveis represas de sentimentos.
A esposa ocultava sua tristeza com óculos escuros, entretanto as lágrimas cintilavam como estrelas em sua pele cor da noite. Os filhos, finalmente entendendo que aquilo significava uma perda, desataram num choro baixo. Afaguei o cabelo deles, oferecendo um sorriso de consolo. Não foi efetivo, pois nem a mim consolava.
Eterna mania de trancafiar tristezas. Uma pedra pesava-me na garganta, com todo custo eu a sustentava, como Sísifo carregando a rocha para o topo da montanha. Minha esposa, abraçada a mim, não sofria dessa necessidade. Os olhos avermelhados boiavam úmidos sob as lágrimas. Tantos fins de semana de churrasco, partidas de Truco regadas à cerveja e as viagens coletivas. A carona às pressas na primeira gravidez. O amigo que ficou horas e horas a fio ao lado da cama quando fui internado por um disparo no baço. O padrinho. O irmão.
O lamento da corneta vigiava as lembranças. Varava a tarde com sua melodia. O silêncio de um irmão.
O comandante fitava o caixão e algo em sua expressão modificava-se a cada segundo do toque. Os lábios tremiam, os olhos tremiam, as narinas dilatavam-se. Rasgava-se de dentro pra fora. Desatou num choro incontido, em posição de sentido. Algo insuportavelmente catártico. Desviei o olhar daquilo, procurando algo de interessante na grama do cemitério.
Terminada a canção, o cabo fitando o horizonte abstrato, guardou a corneta sob as axilas e permaneceu hirto. Não errara nada, como era seu temor.
O caixão desceu para a terra após algumas palavras do comandante, recomposto de seus soluços militares. Nesse momento, a esposa levou as mãos trêmulas aos lábios e vergou-se ao peso de sua dor. Copioso e silencioso, o pranto arrancou-a da serenidade. A corneta foi sua compreensão final. O despertar do torpor. A perda estava concretizada. O caixão no buraco retangular selava a relação dos dois; viveria apenas da lembrança, dos porta-retratos sob o criado-mudo do quarto ou a fita-cassete do casamento. Viveria apenas das palavras dos amigos, do consolo dos familiares. Viveria por intermédio de carícias pretéritas, promessas esquecidas. Sua cama cresceria, cresceria e cresceria até notar que ali ao lado, onde o corpo do marido preenchia os lençóis, restava apenas os resquícios daquela presença.
Por que estou falando essas coisas? Prefiro não prever o futuro dessa mulher e daquelas crianças.
- Aonde você vai? – Minha esposa perguntou quando me afastei, após o caixão descer para a cova.
- Tomar um ar.,,
Caminhei entre as campas, olhando para tudo e nada. Certo momento, minhas pernas pararam de obedecer-me, então desabei sentado numa sepultura de 1890. A tempestade varou-me o corpo. Agarrei a face com ambas as mãos, numa última tentativa de reter aquele vazamento. Um choro feio, cheio de sofreguidão, rouco. Choro de quem não sabe chorar, afinal. O tarde observava meu pranto tímido e consolava-o com o sibilar das árvores. Em minha memória eu só podia rever aquela foto da formatura na academia. Um instantâneo desbotado que descansava no álbum da família. Aos poucos perdia suas cores. Porém, mesmo assim nele se podia divisar meu rosto e o rosto dele, camuflados em meio a todos outros, orgulhosos e pétreos. Segurávamos o espadim no peito. O uniforme de formatura brilhando na manhã. Vinte e dois anos passariam, com a mesma amizade.
Lá estava eu enterrando um amigo.