O NATAL, O BISPO E A PROSTITUTA.

Meia noite do dia 24 de dezembro do ano de 1970. A praça principal da cidade estava iluminada e enfeitada com motivos natalinos. As pessoas, aos poucos se acotovelavam para assistirem à festejada missa do galo, como é ainda hoje conhecida. Na grande maioria das pequenas cidades interioranas de Pernambuco essa missa é considerada o ponto alto do natal e, desta forma, muitas famílias se reunem na praça principal para lhe assistirem e, em seguida, ceiarem em suas próprias residências. Chegam mais cedo à praça por diversos motivos: os mais jovens para se mostrarem de roupas novas, expondo a “figura” como se diz hoje; os mais velhos, para garantir um lugar privilegiado na frente do altar instalado fora da igreja e na frente da praça. Foi nesse clima de paz e serenidade e fraternidade, que Dom Vicente de Bulandim foi recebido na qualidade de bispo diocesano para celebrar a missa campal. Naquele ano ele deixou a cidade sede do seu bispado para prestigiar, como celebrante,  aquela missa que se dizia a mais concorrida da sua diocese – Paróquia da Sagrada Família. A divulgação de que a missa seria celebrada pelo bispo diocesano causou frisson nos fiéis, o que levou centenas de pessoas das redondezas e de outras paróquias àquela cidade movidas pela presença do bispo. O prestígio de Dom Vicente estava ligado a sua atuação em defesa dos mais carentes e isto lhe rendeu, no período revolucionário de 1964, sérias perseguições políticas. Logo foi enquadrado pelo regime militar como subversivo, mas considerando que o Papa por várias vezes o chamou ao Vaticano, as forças armadas de então temiam sua execução por conta da reação internacional. Aconselhado pelo Papa, Dom Vicente se retraiu em sua diocese limitando-se a fazer o que sempre fez de forma discreta. Com isto, nosso Dom foi se consolidando como uma grande liderança católica não só em nosso Estado, mas no Brasil e no mundo. Portanto, era esse famoso bispo que foi celebrar a missa do galo em nossa pequena paróquia e que, certamente sabia da combatividade e altivez dos seus paroquianos - tidos e havidos como "brabos", mas tementes a Deus.

Parece que o universo conspira a favor de tudo que tem que dá certo. Foi o que aconteceu: tudo, nos mínimos detalhes, naquela noite linda de natal, deu certo. Até o céu estrelado parecia fazer parte do cenário. A própria energia elétrica que costumava falhar, não falhou, nem mesmo o coral desafinou como costumava fazer. Sinos tocando, fogos de artifícios no céu, palmas, cânticos, tudo. Um misto de sagrado e profano começou a se instalar da maneira mais tranquila, entremeado pelos abraços e saudações ao bispo.
Cansado, Dom Vicente recolhe-se a sacristia para se recompor e repousar, mas um turbilhão de pessoas queriam lhe abraçar ou pelo menos lhe ver de perto. Contudo os “puxa-sacos” da igreja logo o protejeram com cordão de isolamento. Só os ricos da cidade entravam sem problemas para “beijar” a mão dele. Pelas laterais, um alvoroço repentino se instala: “chamem a polícia, chamem a polícia” – clamava um dos seguranças da igreja sem autorização do bispo nem do pároco da cidade. Na igreja, como na política, esses puxa-sacos também imperam. Para nossa surpresa, coincidiu que o bispo estava passando por perto para se dirigir ao carro oficial que o conduziria os aposentos e imediatamente mandou que parassem com aquele tumulto. Então o puxa saco-mor foi se justificar que aquela prostituta fizera aquele tumulto porque queria beijar sua mão. “Logo ela, que leva  vida SE PROSTITUINDO, “deitando-se” com todos os homens da cidade, inclusive com garotos de menor” – concluiu o repressor. O pároco, por sua vez, meio omisso, fezendo um riso amarelo, mandou que a prostituta se aproximasse. “Venha, filha, disse o bispo. Dê-me um abraço de feliz natal”. Todos se entreolharam, mas Desirè – esse era seu nome profissional, se abraçou e pediu para ser  ouvida em confissão ao que o Dom lhe atendeu, deixando os curiosos perplexos. Retornaram a sacristia e Desirè se confessou. No final da sua confissão, feliz e emocionada pela acolhida daquela autoridade religiosa, indagou: “Dom Vicente, todo ano no natal, eu vou a cadeia municipal me “deitar” com um preso, mas sem cobrar nada, uma espécie de presente de natal. Com não tenho salário, nem carteira assinada, nem décimo terceiro, nem dinheiro sobrando, oferto o que disponho. Porque se o ano todo eu vendo meu corpo, no natal não quero fazêlo. Responda-me: é pecado o que faço”? Dom Vicente, do alto da sua vivência pastoral, ecumênica e sábia limitou-se a dizer que “tua consciência é o que vale mais  – converse com ela e viva em paz”.

Desirè saiu temerosa de ser linchada pela multidão. Mas, surpresa, saiu tranquilamente sob os olhares envergonhados daqueles que, certamente, atirariam várias pedras nela, como se Madalena fosse em pleno século vinte.

PS: qualquer semelhança com a relaidade não é mera coincidência. Melhor pra Desiré, pois já imaginaram se ao invés de Dom Vicente fosse o Silas Malafaia?