Onde a gente pensa que vai? 1

Cheguei ao aeroporto de Lisboa por volta das quatro da manhã. A imensa fila multi-etnica que me aguardava em zigue-zague em direção aos guichês para o controle de passaportes formava uma gigantesca serpente que se contorcia diante dos policiais. Era como uma enorme jibóia irrequieta, com suas escamas, humanas, coloridas e seu sibilar de bagagens arrastadas.

Minha maior surpresa, até então, foi notar a presença da garota que ocupava o assento justo atrás do meu no avião.

*

A primeira vez que a vi foi no aeroporto de Salvador. Lembro-me que naquele instante notei que não era muito alta, o que me pareceu mais um lamentar que não estivesse usando saltos. Esperava, já previamente exausta, sua vez na fila do check-in, vestida com uma confortável calça esportiva branca, dessas com lacinhos pendurados e bolsos por toda parte, que parecem disputar entre si a inutilidade de suas existências e uma camisa branca, masculina, com os botões abertos até um palmo sob o pescoço, o que enobrecia um pouco mais seu busto tímido.

Os cabelos esparramavam sobre seus ombros um tom escuro e doce de castanho. Lisos e obedientes tentavam proteger seu rosto da malícia dos meus olhos. Quanta audácia! Quando sonham eles de velar aqueles traços delicados e pequenos, mas tão luminosos? Era linda, magra, enfadada pela espera e cômoda em seu tênis. E eu fiquei ali perdendo tempo, lamentando a falta de uma troca de olhares... e de saltos altos.

No meu turno, gastei toda a simpatia acumulada na esperança de poder conversar com a garota convencendo o atendente do check-in a permitir que eu levasse minha bagagem toda comigo: uma bolsa esportiva, um laptop e, doze horas depois, também um grande arrependimento por não trazer comigo meu violão.

*

As aeromoças me receberam no avião com o sorriso plástico de toda aeromoça.

- Boa noite! Final do corredor à direita.

Obedientemente e com a desenvoltura de um viajante experimentado me dirigi ao assento, coloquei com cuidado minha bolsa no compartimento e me acomodei confortável. Esperava com a mesma intensidade: um vôo tranquilo, filmes inéditos e a entrada daquela garota.

Quando a vi cruzei todos os dedos possíveis na esperança de que uma mágica coincidência a fizesse sentar ao meu lado, mas tive que me acontentar com a proximidade do assento de trás.

*

A decolagem sempre requer uma oração sincera, longa e introspectiva. Eu agradecia a oportunidade e o estimulo de conversar com Deus e tentava recompor, como um quebra-cabeça, a oração ao anjo da guarda ensinada-me por minha avó, quase trinta anos antes. Apesar do medo, me divertia com a força da decolagem e seus efeitos nos rostos dos outros passageiros, mas minhas mãos não aliviavam a pressão no braço do assento.

A cerca de dois mil metros de altitude, no inicio da exploração da aeronave tive a primeira oportunidade de cruzar o olhar com minha companheira de viagem. Tinha a boca totalmente aberta, num exercício para compensar a pressão nos tímpanos, ao me ver fechou-a rapidamente e transformou tudo em um sorriso leve e amigável. Daqueles que se dão ao professor quando nos surpreende colando. Apertei os olhos e devolvi o sorriso com imenso prazer.

- Oi.

Pensei, mas não disse. Nenhuma palavra, por mais curta, tinha o direito de intrometer-se naquele sorriso.

Minhas esperanças de experimentar um fulgaz romance nas alturas abandonaram minha mente e deixaram lugar a uma leal sensação de plenitude e satisfação diante daquela realidade. A mim bastava a visão de seus cabelos espalhando frescor sobre o encosto do assento, o brilho de seu sorriso infantilmente envergonhado e a sutileza daquele olhar, eternamente impresso em minhas lembranças.

*

Em pé, avançando lentamente naquela fila, esperando o que dali a pouco se revelaria uma das mais incompreensíveis experiências diplomáticas de minha vida, eu me alegrava com a lembrança de minha avó e suas orações eternas.

A garota foi atendida e desapareceu em meio ao caos do desembarque. Qualquer tentativa de despedida teria sido vã.

Eu, surpreendido pela impossibilidade de continuar minha viajem e cruzar a fronteira européia, retornei ao meu país indignado com o comportamento da polícia portuguesa, mas feliz ao auto-afirmar o domínio do conhecimento dos meus direitos de cidadão do mundo.

Fui obrigado a esperar a fria manhã seguinte chegar para embarcar no avião de volta e dissolver definitivamente minhas esperanças de caminhar pelas praças européias mais uma vez.

Porém, em momento algum, lamentei minha aventura.

Viajei espaços infinitos em minha imaginação e memória pagando apenas uma passagem. Minha infância, meus anseios, minha fé e minha dignidade... Nenhum roteiro turístico me levaria tão longe.

Tive a melhor das companhias viajando sozinho e retornei ao Brasil com o espírito e a auto-estima renovados, certo apenas de que em algum lugar de Lisboa uma linda e magra garota caminha elegantemente sem saltos altos.

Nahuel Caran
Enviado por Nahuel Caran em 29/11/2010
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