À Flor da Pele

Ainda ontem os sorrisos borbulhavam em sua face...Interessante como o tempo dispunha de si, libertino e intruso, tomando-a entre os braços. No rosto, guardava um estranho enfado, cansaço de si e das tantas esperas que ia acumulando em meio as marcas do que sonhava. Repetiam-se as estações e dentro dela apenas sobrevivia o outono e o inverno. Revezavam-se, como a cumprir um ritual, em que era seu coração, o altar. Talvez, fosse ela, a própria oferenda...

Decidira-se que ninguém mais tomaria posse da paisagem dos seus olhos. Nem àquela inusitada saudade que a despia de razão e equilíbrio. Sabia bem do gosto da dor, do bater renitente das horas que se arrastavam e das curvas insistentes em que seus olhares se lançavam, buscando algo que nunca viria. Tinha a vida uma linearidade que a incomodava. Pensava nos sons que a cercavam e na indiferença que eles causavam a si. Talvez, por não estar onde todos a imaginavam. Muitas vezes, percebia os olhares dos que a rodeavam. Deviam perguntar-se, aonde ela ia sempre tão absorta. Desintegrava-se entre um pensar e outro. Deixava-se ficar no limiar entre o expressivo e o inexpressivo, como se suas emoções fossem uma tela, cuja nitidez era sempre desfocada. Louca dualidade que a acompanhava, enquanto mantinha-se de olhos despertos. Quando o sono a vencia, os sonhos falavam-lhe da realidade e da vida enviesada, onde se equilibrava sob o peso dos seus próprios ombros.

Serviu-se de mais vinho. A taça saboreava dos seus lábios, enquanto o palato tentava identificar, além do sabor que recendia daquela bebida. Estava sempre a procurar sentir, além do presumível e do visível. Apetecia-lhe esse caminhar pelo mundo do abstrato e das percepções. Mesmo na concretitude do que lhe tocava as mãos, mergulhava nas sensações que demandavam daquele contato. Viagens que a mantinham em lugares, onde a emoção era caminho de via única. E as fazia, sem qualquer garantia, porque a vida lhe parecia mais que um manual de boas maneiras ou uma apólice de seguro. Viver era também não se compreender e, ainda assim arriscar-se. Dispensava os recomendados conta-gotas dos prudentes ou as posologias arbitradas pelos manuais de sobrevivência. Acotovelava-se entre seus fragmentos, expondo-se as intempéries, mas se permitia transpor portais ou pelo menos sentir a brisa que despia a liberdade de sonhar.

Por instantes, lembrou-se da voz dele a murmurar: Cabernet seco, Safra 1986...Um tilintar de vibrações a invadiu. Indecifráveis pensamentos a tomaram, enquanto a música acariciava-lhe o corpo. Notas musicais que continham histórias e que suspiravam em êxtase, quando também sentiam no ar, o perfume das recordações que dela se desprendia. Um aroma de cumplicidade a percorreu em arrepios. Cantarolou baixinho: “E por falar em saudade, onde anda você...?”. Brindou-o em meio a uma lágrima, enquanto um sorriso, alimentava-se da imagem do passado. Sempre achara a saudade ambivalente. Drummond assaltou-lhe a memória: “... Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim”.

Apesar da ausência aparentemente assimilada, era somente naqueles momentos que a vida resignificava-se, como se a solidão fosse sua real companheira. Agradava-lhe estar consigo. Ria-se, quando os amigos mencionavam a solidão como um estado de difícil convivência. Mirava-se sem qualquer temor, embora soubesse que por mais que se esforçasse não veria os tantos reflexos que a espelhavam. Percebia que existiam confissões dentro de si, que não sussurraria nem a ela própria.Havia uma parte de si velada, inatingível aos olhos do mundo. Algo que se mantinha atrás dos seus pensares, na obscuridade que devorava qualquer transparência. Onde habitava esta que sabia tanto dela, a ponto de a proteger dela própria? Em que momento da vida a encontraria, se é que isto aconteceria?

Algumas palavras ardiam dentro de si, como o olho de um furacão, onde a tranqüilidade é aparente. Mas era momento de oferecer-se ao silêncio. Anunciou-se ao sonho. Fechou os olhos, deixando-se cobrir pelo manto do sono. Lá fora, ainda era inverno...

fernanda Guimarães

Fernanda Guimarães
Enviado por Fernanda Guimarães em 28/01/2005
Reeditado em 25/08/2008
Código do texto: T2640