Um dia perfeito
::Um dia perfeito::
Desde as primeiras horas do dia, fez tudo certo. Logo ao despertar o pensamento estava em Deus. Em uma oração singela, pôs todos os amigos e até os desafetos nas mãos do Criador, olhou através da janela e agradeceu pela luz do dia pelo canto dos pássaros que lhe acariciavam os tímpanos, ainda com as mãos postas pediu pelas pessoas em todo mundo que porventura naquele momento estivessem passando por provações para que fossem fortes.
Levantou-se, erguendo os braços como se quisesse alcançar o teto de cedro, bocejou, depois foi até o espelho e por um momento ficou a fitar o próprio rosto já maltratado pelo tempo. A barba mal feita dava-lhe um ar mais sério. Resolveu começar tirando a barba, o que tomou uns quinze minutos de tempo, depois escovou os dentes e foi para debaixo do chuveiro. Sentia uma estranha sensação de paz quando a água levemente aquecida tocou-lhe o corpo, ali ficou por mais ou menos meia hora. Enxugou-se, colocou roupa limpa e dirigiu-se à cozinha onde a mesa posta já o esperava. Espigas de milho cozidas, polentas, Iogurt, queixo branco, maçãs, suco de acerola, um dos seus preferidos. A velha ama aproximou-se, beijou-lhe a testa e depois colocou uma porção de chocolate amargo, a fumaça subiu até suas narinas estimulando ainda mais o apetite do começo de manhã.
Provou de tudo que estava à mesa. Por um momento olhou para a negra que o serviu com extremo carinho, não entendeu por que esta visão fez o coração disparar. Foi até ela e abraçou-a carinhosamente, o que foi imediatamente correspondido.
- Amo você Conchita – Disse com uma forte emoção.
- Também amo você filho – respondeu a ama com emoção incontida, revelado por uma lágrima que rola suavemente pelo rosto. Conchita fora trazida pra morar com ele depois que perdeu os pais, ela havia tratado dele desde o nascimento.
- Posso tirar a mesa ?
- Pode meu amor, já estou de saída.
Quando já preparava-se para ligar o carro foi chamado por Conchita.
- Telefone filho!!
Tirou a chave da ignição e foi atender o telefone e assim ficou uns cinco minutos. Era um amigo perguntando sobre um projeto sobre reciclagem que ficara de escrever. Trocaram algumas idéias e por fim desligou e saiu rápido para o carro. Lançou mais uma vez um olhar para a velha ama, que lhe acenou carinhosamente. Pisou o acelerador e carro seguiu por entre hortências azuladas. Acionou o controle o grande portão de zinco abriu-se dando passagem para o carro. Sem entender muito o porquê, seus pensamentos foram invadidos pela imagens dos pais. Lembrou-se da infância na casa humilde mas cheia de fartura e brincadeiras na Serra onde nasceu e cresceu, lembrou-se do casa onde os pais preparavam a erva mate para o sagrado chimarrão, lembrou-se das visitas a Porto Alegre de onde sempre voltava assustado com tanto movimento, bem diferente da tranqüilidade da residência ao pé da Serra em Bento Gonçalves. Ligou o som do carro onde uma música italiana começou tocar. Distraiu-se completamente a ponto de não perceber a curva fechada, um caminhão enorme destes de muitos pneu desgovernara-se e atravessara a pista, ainda tentou desviar. Tarde demais, o automóvel foi atingido em cheio, um grande barulho de freios, vidros quebrados e ferragens retorcidas quebrou o silêncio da Serra.
Abriu os olhos e um grande clarão se fez. O corpo não doía, sentia-se leve, caminhou um pouco e viu ambulâncias chegarem com suas sirenes ligadas. Assustou-se quando viu os paramédicos tentando reanimar o corpo dele. Não entendeu nada a princípio, até que avistou em meio à neblina rostos conhecidos, primeiro a mãe, depois o pai. Foi até eles e os abraçou. Já haviam se passados tantos anos e no entanto pareciam remoçados. Depois do abraço permaneceram em silêncio.
As ambulâncias saíram. O caminhoneiro que estava sentado no chão, demonstrava grande tristeza. Pássaros continuavam cantado, o vento soprava a mata nativa, curiosos parando para ver os destroços. Na casa de onde saíra, a velha ama sente o aperto no peito que não consegue entender. Se pudesse, veria que agora três personagens lhe faziam companhia e fitavam-na com carinho. Tudo em seu lugar. Tudo perfeito, pouco compreensível no sentido mais humano, mas tudo perfeito.