Cegueira, desistência, redenção e o que vem depois

Nessa vida, só o que há de certo é a morte. Tudo que venha a acontecer, depois que nascemos, é devido a opções e caminhos que tomamos.

Eu, aqui, depois de tanto tempo vivido, olho para estas páginas em branco e digo a mim: "Se pudesse viver tudo de novo, tanta coisa mudaria...”

Desde pequeno, fui extremamente centrado, sempre deixando de lado a diversão, para que pudesse conseguir conhecimento e portanto, segurança para meu futuro, para o dia de amanhã. “Carpe diem”? “Aproveitar o hoje”? Era apenas uma bobagem. Racionalismo e método eram minhas divindades particulares, e elas me diziam que qualquer coisa que não me empurrasse para a frente era descartável, e devia ser deixada de lado. Nunca fui de festas, socialiades ou até mesmo relacionamentos em geral.

Com tanto esforço, minha vida escolar foi coberta de elogios de professores, e a universidade que escolhi me acolheu de braços abertos. A partir daí, só aumentou meu aplico nos estudos. Raros eram os dias nos quais saía de casa, só o fazia por uma necessidade realmente extrema. Amigos, não os tinha, e não me faziam falta, tampouco (ou era o que eu pensava, pelo menos).

Com o diploma em mãos, me senti ótimo. Naquele papel cilíndrico, estava assinada a minha própria Declaração de Independência. Finalmente poderia me distanciar dos laços da família e seguir para construir meu futuro SOZINHO.

Pouco tempo depois, consegui um emprego numa importante empresa de seguros, e dediquei cada segundo de meu tempo ao trabalho. Horas extras, papeladas que levei para casa, sempre buscando aprimoramento profissional. Com isso, comecei a subir, degrau por degrau, numa escalada rumo ao topo da empresa. Promoção após promoção, certo dia me vi no cargo de vice-presidente.

Ah, como era prazeroso olhar da janela de minha sala, do alto, e ver todas aquelas pessoas que não conseguiram vencer tanto quanto eu... Passava com meu carro nas ruas, e ao ver famílias de mendigos na rua, sentia dentro de mim um prazer selvagem de saber que era muito mais do que aqueles pobres-diabos. E nunca senti, nem por um momento, inveja de ninguém, pois sabia que com meu esforço, venceria qualquer um .

Mesmo assim, eu não conseguia tirar da cabeça a idéia de que não tinha nenhum herdeiro, e por conseguinte, ninguém que mantivesse meu nome, quando eu partisse, e tomasse conta de tudo o que apurei nesta vida. Isso me perseguia, me preocupava. Precisava urgentemente de um herdeiro, sangue do meu sangue, e para isso precisava de uma esposa.

Modéstia a parte, sempre fui um bom partido. Não foi difícil encontrar uma mulher bonita e interessante, e demorei ainda menos para me casar com ela. Esta me deu dois filhos, um casal, que passaram a ser meu foco. Dediquei-me ainda mais a acumular bens, para que nada faltasse a eles. Já era um homem rico, mas nunca se sabe...

E a vida foi passando, meus filhos crescendo, minha esposa e eu envelhecendo...

Até que finalmente me aposentei. Feliz, pensei: “ Finalmente, depois de tantos anos, vou aproveitar os frutos de tanto trabalho duro, frutos estes que colhi todos”.

Ou pelo menos foi era o que eu pensava.

Ao chegar em casa, olhei com atenção ao redor, pela primeira vez. Minha esposa me recebeu friamente, sem demonstrar nenhum resquício de afeto ou carinho. Meu filho, de saída para o trabalho, e minha filha, indo para a faculdade, nem me dirigiram o olhar. Estranhei, mas não comentei nada. Almocei e saí.

Sem destino certo, comecei a perambular pelas ruas da cidade. De longe, podia ver a cobertura onde morava, aquela fortaleza, no topo do mundo. Olhei para o meu carro. Um importado, top de linha, sem um arranhãozinho sequer. Minhas roupas. Grifes das mais respeitadas mundialmente. Todos estes emblemas de um executivo de sucesso, mas vazios, completamente vazios, para o homem que finalmente desabrochava dentro de mim.

Em desespero, levei as mãos ao rosto. Como pude ser tão cego, eu gritava. A felicidade, por mais que eu tivesse corrido atrás dela, não passava de um reflexo nas ondas. A VERDADEIRA felicidade, aquela que me satisfaria de verdade, sempre esteve ao meu lado, oferecendo-se a mim, e não lhe dei ouvidos. Cego que fui, em sempre priorizar o meu “aprimoramento”... Mas que aprimoramento é esse, que não se baseia em conselhos de amigos, e na ajuda de pessoas queridas? Aliás, que amigos, que pessoas queridas, se nunca dei atenção a nenhuma dessas “bobagens”? Fechado dentro da pequena casca de meu mundinho, nunca olhei de verdade um palmo além de meu nariz. Como pude passar todos estes anos vendo pessoas criarem seus laços, amigos, amores, e nunca ter eu mesmo feito nada disso? Idiota que fui, pus vendas em meu coração, que por mais que gritasse não conseguia fazer com que minha mente lógica ouvisse a voz de emoção nem por uma mísera vez! Quanto tempo passei pela vida sem percebê-la? 30, 40, 50 anos? Nem sei ao certo...

Lembro-me do dia da família de mendigos, e percebi que estava MAIS UMA VEZ errado... Por mais difícil que fosse a vida daquelas pessoas, por mais pobres que eles fossem, eram milhões de vezes mais ricos que eu... Tinham um ao outro, se amavam, e isso, eu descobria agora, valia mais que todo o dinheiro que eu ou qualquer outro bilionário do mundo pudesse um dia chegar a ter.

Olhava assoberbado da janela da minha sala, naquele prédio enorme, e via as pessoas lá embaixo com desprezo e pouco caso. Por que fazia isso, se elas eram bem mais ricas que eu? Riam, se divertiam, namoravam, e eu apenas fechado em mim mesmo...

Cambaleando, voltei para casa como pude. Arrasado pela epifania que acabara de vivenciar, eu me impressionava pelo fato de ainda conseguir andar.

Chegando em casa, fui até meu quarto. Na mesa de cabeceira, havia uma gaveta. Lá estava, bem escondido, meu velho e fiel .45, que sempre guardei ali para estar pronto a defender-me de malfeitores que atentassem contra minha vida. Finalmente eu me livraria do pior malfeitor, aquele que arruinou completamente minha existência: eu mesmo.

Lentamente, abri o tambor. Completamente carregado. Fechei-o, e o clique me lembrou algo que não consegui lembrar. Puxei o “cão” e apontei o revólver para minha têmpora. “Que finalmente seja feita a luz”.

Então, já pronto a acabar com minha vida, ouço uma voz:

- Então é assim? Uma vida de cegueira chega ao fim com um ato de covardia? Você, que sempre se orgulhou de entrar pela porta da frente em tudo que fez, agora se encolhe pela porta dos fundos?

Abro os olhos, espantado, e vejo um homem. Cabelo e barba longos, não muitos mais que 30 anos. Veste uma túnica branca, e uma faixa vermelha lhe atravessa o peito. Tem olhos serenos, que parecem olhar dentro e através de mim. Em suas mãos e pés, vejo chagas de feridas profundas. Em sua testa, uma coroa de espinhos.

- És uma ovelha perdida, irmão. – diz o homem – Venho aqui para te levar de volta ao rebanho.

Com isso, ele põe a mão em minha face.

- Tu, que passaste a vida ostentando as vendas da ganância, eu as removo de tua vista. Vá, e viva finalmente a felicidade que tanto buscou, já que agora sabe onde realmente encontrá-la.

E num piscar de olhos, ele some. Fico parado, boquiaberto, sem encontrar palavras.

Corro até minha esposa, abraço-a com todas as minhas forças e lhe digo finalmente que a amo demais, peço-lhe que me perdoe por todos estes anos que passei junto a ela, mas com a atenção voltada apenas para mim. Afirmo que tudo o que eu queria era poder voltar no tempo para consertar tudo, mas como não podia, lhe daria todo o amor e afeição que pudesse daquele momento em diante. Nunca notei como ela era tão bela, mesmo agora que a idade já a alcançava... Talvez até mais bela ainda que antes...

Quando meus filhos chegam em casa, faço o mesmo. Com lágrimas nos olhos, vejo a minha família, agora mais que nunca MINHA família, mais preciosa que qualquer tesouro que jamais existiu ou existirá. Ali morava a felicidade.

Finalmente posso vê-los.

Finalmente posso amá-los.

Finalmente.

Jhonata Luís
Enviado por Jhonata Luís em 23/11/2010
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