O taxista
O taxista
Estava chovendo muito em Aracaju. Diziam os jornais que havia chovido o dobro do esperado para o mês de julho. O Aribé estava encharcado. Mesmo asfaltado, seus canais não mais continham a água. A velha Rua Pernambuco nos conta muitas estórias; estórias de vidas que se foram, e estórias de vidas que ainda estão conosco. Um rapaz de porte pequeno, morador da dita rua; motorista de taxi que fazia ponto na Praça Dom José Tomaz, a popular Praça do Siqueira, estava no seu lugar como todos os dias. O moço aguardava a fila andar de acordo com a chegada dos clientes. Everton conversava com seu colega de profissão que atendia pelo nome de Bazuca:
- Rapaz, soube o que houve ontem à noite aqui?
- Sei. Mataram a facadas aquele rapaz que vendia crack. Ele mereceu.
- Menos um. Concordou o amigo.
Everton terminava seu dia às sete da noite de domingo a domingo, chovesse ou fizesse sol. Por isso ele não testemunhou o assassinato do jovem do Aribé. O rapaz não vendia a pedra maldita. Contudo andava pela “Praça do Siqueira” na expectativa de ganhar alguns trocados fazendo o que os usuários chamam de canal. Por isso Jacozinho tornou-se parte do cenário da praça. Sua mulher havia tido criança. A situação estava de enlouquecer para os três quando uma lâmina fria o fez descansar de sua triste e curta existência entre os habitantes deste mundo.
- Foi Jacozinho quem caiu, não foi?
- Foi merecido. O cara passava a pedra para todos.
-Ele tem família? Perguntou Everton com um interesse não muito típico de sua personalidade.
- Quem sabe? Esse povo é assim. Vem do interior do estado aprontar na cidade. Por mim explodam todos. Disse o colega muito convicto de seus argumentos.
A fila de taxi anda e Everton leva seu passageiro para o seu destino. Já eram sete horas, portanto, aquela seria a última corrida do dia. Ele deixou seu passageiro no Luzia próximo ao Mister Magú, uma lanchonete do lugar muito assediada por jovens de classe média. Logo em seguida, Everton dirigiu-se para sua casa no Aribé. A Rua Pernambuco estava menos molhada, a chuva dera uma trégua. As pessoas estavam na calçada como era o costume. No Aribé as pessoas estão mais próximas. Existe um cheiro de interior nas relações mesmo sendo Aracajú uma cidade quase grande.
- Boa noite, Dona Jasmim! Disse Everton a uma senhora idosa que morava na casa ao lado da sua.
- Boa noite. Respondeu ela.
Ele deixou o taxi em frente de sua casa, pois esta não tinha garagem. Abriu a porta e entrou. Lá dentro estava Dornélia. Esta era uma moça muito bonita. Jovem bem educada nascida em Glória. Os dois estavam ficando como falam os jovens. A família de Dornélia viera para Aracaju na época do boom do petróleo em Sergipe. Sua família de classe média fora violentamente afetada com o falecimento de seu marido em uma das plataformas da Petrobrás. A briga pela herança dividiu a todos e a jovem por ser a mais nova de seus irmãos ficou com sua mãe. Seus olhos eram verdes, e seus cabelos negros destacavam a brancura de sua pele mediterrânea. Enrolada em uma toalha de banho ela dirige sua palavra ao seu amor.
- Como sempre pontual.
- Acredito que o controle do tempo é fundamental para um bom viver. Respondeu o moço.
- Hoje na Universidade foi um barraco. Disse Dornélia.
- Como assim? Perguntou Everton.
- O professor de Ciência Política acusou a militância de hipócrita.
- Esta é a razão que me fez optar pelo meu taxi. Ganho mais que muitos professores.
- Mas você não deve acomodar-se a isso. Argumentou a filha de Nossa Senhora da Glória.
- Lá vem você com o mesmo papo. Pare com isso Dornélia. Eu sei o que estou fazendo. Em breve terei meu apartamento.
- Meu pai se deu bem sem um diploma superior, mesmo assim, ele estudou para concursos. E você nem isso faz. Continuou Dornélia.
- Sabe, Dornélia, seu pai era um homem bom, mas você conhece o que penso sobre suas posições sobre a vida. Cada um tem seu jeito de viver. Deixe-me ser como quero. Everton pôs suas idéias com um tom um tanto agressivo. Os dois estavam em crise por que ela queria casar-se com o rapaz, mas não se sentia segura com a situação financeira.
No Aribé as ruas se cruzam com muita freqüência. As pessoas se encontram em suas esquinas e cada um tem alguma coisa para contar. Aquela noite lhes traria uma surpresa. Esqueceram as diferenças. Após o uso da televisão, o que era hábito, ambos foram dormir. Uma mulher ferida em suas expectativas nunca se sente aberta a maiores aventuras. Assim, cada um ficou em seu lugar na mesma cama. Tarde da noite quando o bairro se aquieta por definitivo, Everton levanta-se de sua cama com um choro de criança à porta de sua casa. Era um chorinho abafado, porém alto o bastante para chamar-lhe a atenção. “O que é isso?” Pensou o rapaz. Everton abriu cuidadosamente a porta, olha para os lados e não vê ninguém. Sai até a calçada e encontra um cesto de compras e dentro dele uma criança recém nascida. Por instinto Everton toma o cesto nas mãos, o põe sobre o sofá, e corre em busca de Dornélia.
- O que é isso? Everton o que você fez trazendo essa criança para dentro? É melhor chamarmos a polícia.
- Não! A polícia pode nos enquadrar por seqüestro. Você sabe como são as coisas.
- Você está louco? O que vamos fazer então? Perguntou Dornélia desejosa por uma resposta racional.
A criança começou a chorar. O jovem casal não sabia o que fazer para parar o choro.
- Faça alguma coisa Dornélia, você não é mulher? Toda mulher entende de criança.
- Olha o machista falando! Quer dizer que só nós as mulheres entendemos de criança. Vocês só entendem de fazê-las. Homens! Todos iguais. Dornélia tomou a criança nos braços tirando-a do cesto tentando acalentá-la. Quanto mais esforços a moça fazia, mais a criança chorava.
- Pare! Você vai acordar a vizinhança. Everton tomou a criança dos braços de sua amada e ele mesmo tentou acalmá-la. O bebê se aquieta nos braços de Everton. “Olha que coisinha linda! Bu!Bu!”
A noite varava a madrugada. Agora na casa de Everton haviam três pessoas. A mais nova não tinha nome. O jovem casal sentou-se no sofá e ficou olhando o sono do bebê estranho sem saber o que fazer.
- Tive uma idéia! Saltou a palavra de Everton subitamente.
- Qual? Perguntou Dornélia com curiosidade.
- Vou colocá-la no portão da casa de dona Jasmim.
- Você está louco! Pode chover novamente! A criança pode ter hipotermia. Você é louco!
Embora a moça resistisse nada fez para impedi-lo de realizar seu plano. A criança foi para o portão da casa de dona Jasmim. Em pouco tempo tudo voltou ao normal como sempre foi. Por volta das duas da matina, Dornélia levanta-se em virtude de um pesadelo. Ela havia sonhado com a criança e que uma águia gigante a havia levado para seu ninho. No sonho ela dizia: “Não mate meu bebê, por favor!” Dornélia foi até a cozinha tomar água e ouve o choro de uma criança novamente vindo de sua porta. Ela corre até a porta e o bebê estava no mesmo lugar onde fora encontrado a primeira vez.
- Não, não pode ser! Everton! Gritou ela baixinho. Como seu namorado estava em sono profundo, ela tomou a criança e a levou para cama. Fez leite e improvisou um jeito de alimentá-la. Ambas logo em seguida sucumbiram à força da natureza. O dia amanhecera cheio de sol. A chuva havia cessado e o sol brilhava às sete horas como se fosse meio dia. Everton levantou-se e caminhou até o banheiro como de costume, e nem se deu conta da nova habitante do Aribé. Trocou-se e saiu. Dornélia passou o dia em casa. Não foi para a faculdade, avisou sua mãe que almoçaria na casa de Everton, e dedicou o dia inteiro para cuidar da menininha. As duas se deram muito bem. A criança trocava risos instintuais com a moça e esta correspondia a todos com todos os mimos que uma boa mãe pode oferecer. Às três da tarde as duas saem para fazer umas compras. Dornélia se viu tomada por uma força nunca experimentada antes. Ela nem imaginava que havia tanto carinho dentro de si. A criança instalara-se em seu coração. Mas, e agora? E quando Everton chegar? O que fazer? Everton chegou às sete em ponto. O rapaz era muito pontual. Entrou em casa, sentou-se no sofá e começou a tirar os sapatos. De repente ele se depara com sua namorada:
- Dornélia, o que você está fazendo aqui? Perguntou o taxista surpreso.
- Eh, resolvi tirar uma folga e cuidar de você, meu bem. A moça não queria expor os fatos de forma truculenta. De fato ela queria ganhar tempo. Mas o destino é sempre implacável. A criança começa a chorar e a moça corre como que por instinto ao seu encontro.
- Não, não acredito nisso! Gritou o taxista.
- Você é uma perfeita idiota! Idiota! Continuou o rapaz.
- Eu não sabia o que fazer. A noite estava fria e tive pena da criança.
- E agora? O que vamos fazer? Perguntou o moço.
- Leve a criança para um abrigo! Gritou Dornélia com voz de choro.
- Dornélia, nós estávamos numa situação difícil. Nosso relacionamento estava frio. Parece que agora a coisa piorou. Asseverou Everton.
Dornélia sentou-se no sofá com a criança anônima e a acalentava em seus braços. A pobre dormia sossegadamente. Everton disse que depois da meia noite iria levá-la para um lugar seguro. Naquele instante, quando não haviam palavras para serem ditas, o casal olhava-se ininterruptamente como se fosse uma despedida. A hora chegara. Dornélia com os olhos cheios de lágrimas entrega a criança adormecida ao seu ex-amor. Este caminha rumo à porta. Ao chegar próximo dela, a criança solta um sorriso inocente. Everton não se contém e ri também. Vira de vagar para Dornélia e diz: “Meu bem, preciso ser racional. Tenho que dispensar a criança”. Dornélia se entrega ao afeto que inesperadamente surgira em seu peito racional, e chora com muita dor. A porta se fecha. Instantes depois o rapaz está de volta.
- Onde você pôs a criança?
- Não sei.
- Por que você não me conta?
- Porque você está fora de sua razão.
- Será racional se livrar dela?
- Então, porque você não a levou para policia?
- Porque o certo é não se envolver. Você não fala tanto em dinheiro, futuro.
- Mas, a criança é diferente.
- Como assim? Acho isto muito pior. Afinal, não temos estabilidade nenhuma.
- Dar-se um jeito.
- Não acredito no que estou ouvindo.
Os dois trocaram farpas até as tantas. Everton foi dormir no sofá e Dornélia na cama. Ela antes de deitar dissera que aquela seria a última noite naquela casa. Às três da manhã ouve-se um barulho na porta. Alguém havia batido com muita força. Everton dissera a si mesmo, “É a policia, estou ferrado”. Correu para a porta do jeito que estava; o moço usava roupas íntimas. Abriu a porta e não havia ninguém, apenas um cesto que ele já conhecia. “Oh, meu Deus, não pode ser”. Pensou o rapaz. Então Everton sai, toma o cesto, e caminha novamente para a porta de sua casa. Nela havia um bilhete pregado: “Devolvi tua filha”. Everton pensou que o mestre Tauzarmir e sua esposa, a cigana Verônica, tomariam conta do bebê porque há muito tempo eles diziam que amavam crianças, mas a pobre Verônica não podia ter filhos. Seria a mão e a luva. O jovem taxista senta-se no sofá com a criança anônima nos braços e respira fundo na esperança de entender o que estava acontecendo. Um vento frio e suave entra em sua sala e ele não sabe de onde vem. Sua mente relaxa e o jovem pega no sono. O sono foi tão profundo que ele sonhou que estava na Praça do Siqueira conversando com seu colega Bazuca:
- Rapaz, você sabe quem morreu ontem?
- Num foi o Jacozinho?
- Foi. Você sabia que a mulher dele estava grávida, e deu a luz na mesma noite que ele morreu?
- Não.
- Dizem que ela jogou a criança no lixo. Maldade né? Todos querem dispensar um inocente. Mas, que culpa a criança tem?
- É.
- Você teria coragem de fazer isso?
- Eu, não.
Às sete horas da manhã Everton acorda com a menina em seus braços. Ouve barulho de gente na cozinha. Era Dornélia que preparava o café. Ovos fritos, bacon, torradas, e café com leite. Para a pequena inocente, uma farta mamadeira de leite. Todos comeram e depois voltaram para o sofá.
- Meu amor, se você fosse dar um nome a esta criança, que nome você daria?
- Bem, se fosse homem, seria Jacó, mas, como é mulher, ela será Sara
- Então, nossa filha será chamada Sara.
- Que filha, Everton?
- Esta.
Nunca se sabe como são as pessoas ao certo. No Aribé nem tudo tem um final feliz. Mas, para Sara, a sorte bateu à porta. O casal viveu sua vida. Tiveram outros filhos. Todos se criaram no Aribé. Todos contaram sua estória. Um foi policial, o outro taxista, e Sara foi para Glória trabalhar como Assistente Social.