Relatos do inverossímil VI
No aurorescer daquela manhã primaveril o sol com iridiscente fulgor despontava no horizonte por entre nuvens flamejantes prenunciando mais um dia de raro esplendor.
Borboletas multicores na plenitude de suas graças voavam entre flores de matizes variadas num sereno e cadenciado bailado. Gotas de orvalho sobre a relva umedecida tais gemas resplandecentes no aveludado da campina. É a primavera numa festa de estonteante beleza nos conduzindo por veredas fascinantes. Oh natureza bendita! Oh maviosa canção de solfejos angelicais a nos conduzir a regiões ignotas onde a alma se extasia em encantamento.
--- Que belo dia --- exclama o cão rico.
--- Belíssimo, meu amigo --- responde-lhe o cão pobre. Não fora tanta poluição; não fora tanto poluente lançado na atmosfera, acredito que os dias teriam muito mais encanto; respiraríamos um ar mais puro. A natureza agradeceria. Mas em nome do progresso; diante do inimaginável avanço tecnológico os humanos se comportam como insensatos agressores da natureza. Se esquecem de que quanto mais agredida mais imprevisível ela se torna. Não seria essa onda de cataclismos uma resposta aos seus ofensores ?
--- Se bem que diante de tão deplorável comportamento da maioria dos homens me parece estar havendo uma certa conscientização de alguns no que concerne ao repeito a natureza -- declara o cão rico.
---Não sei o que se passa, apesar de hoje ser domingo surpreende-me essa intensa movimentação de pessoas indo e vindo; esse grande fluxo de automóveis repletos de adesivos colado nos vidros e tantas bandeirolas tremulando ao vento ---exclama o cão pobre.
--- Você não está sabendo ? Hoje é dia de eleições onde deverão ser escolhidos os novos legisladores e governantes. Os eleitos serão os futuros responsáveis pelo destino do país. Digo-lhe isso porque há umas duas semanas grande tem sido a movimentação lá em casa. Um irmão de minha dona deputado federal e candidato à reeleição, tem estado em grande atividade. É um entra e sai dos chamados cabos eleitorais durante todo o dia e se estendendo pela noite. Acredito mesmo que "deputado" deva ser uma coisa muito boa pois o que ele tem gasto não é pouco. O que mais me surpreende é o fato de alguém ser capaz de vender o seu voto, de sorte que muitos polísticos são eleitos à custas da compra de votos e não pela sua capacidade de legislar em favor da população.
---Sem demonstrar surpresa o cão pobre toma a palavra e, enfaticamente, assevera que no seu entender os políticos não compram votos e sim a consciência de alguns eleitores. Daí a minha dúvida quanto ao que seria mais condenável: comprar a consciência de alguém ou esse alguém vendê-la.
---No meu entender --- retruca o cão rico ---ambas são atitudes deploráveis que maculam o espírito da democracia.
--- Se bem que diante de total descrença do povo no que diz respeito à honestidade da maioria dos políticos, não tenho dúvida de que num futuro próximo "político" deixará de ser termo pejorativo e tornar-se-a motivo de orgulho para aqueles que porventura venham a ser eleitos pelo voro livre e consciente dos seus concidadãos. Hoje em dia, pelo que nos tem sido dado a observar, a maioria daqueles que postulam um cargo eletivo são homens desprovidos de caráter e totalmente incapazes de representar o povo. Além das falsas promessas de campanha objetivam um enriquecimento ilícito às expensas da miséria de muitos. Para que esse país atinja um estado democrático na acepção do termo é preciso, de antemão, que o seu povo alcance um grau de educação elevado e tenha consciência plena da importância do seu voto. Democracia se alcança exercitando-a. Tenho fé nas futuras gerações ainda não corrompidas, livres da mácula da desonestidade. --- resume o cão pobre.
--- Mas ao que me parece ainda existem humanos de bem comprometidos com o bem estar social; humanos que por seus princípios não compactuam com essa falta de pudor que observamos no dia a dia.
--- Apesar do avanço do conhecimento; apesar do avanço tecnológico a ciência dos humanos ainda deixa muito a desejar. Embora ela tenha caminhado a passos largos; embora tenha alcanãdo resultados insofismáveis no que diz respeito à alta tecnologia, modestos têm sido os avanços do homem quando ao conhecimento de si próprio. Se bem que saibamos que quanto mais avança o conhecimento mais aumenta o desconhecido. Mesmo diante das grandes invenções despontadas sobretudo no correr do século XX taos como avião supersônico; produção e uso da energia nuclear; avanço no tratamento de doenças até então incuráveis; tomógrafo computadorizado; ressonância magnética; computadores de última geração; robôs dentre outras, os humanos ainda não conseguiras inventar algo que fosse capaz de aferir o caráter dos homens. Assim, a exemplo de um ultra-sonógrafo, ondas magnéticas emanadas da consciência dos humanos seriam captadas e transformadas em imagens num visor e daí feita a aferição da índole, da firmeza de vontade; constância e estabilidade relativas à maneira de agir e reagir; feitio moral; aspecto psicológico da indivildualidade enfim, do caráter do indivíduo. Desse modo, acredito que diante da obrigatoriedade imposta aos postulantes a cargos eletivos de se submeterem a um teste dessa natureza, poucos atingiriam o perfil desejado.
De súbito um aautomóvel estaciona próximo à praça enquanto que alguém , se dirigindo à dona do cão rico convida-a a comparecer a seção eleitoral a fim de exercer o seu direito de cidadania.
Mais uma vez sozinho o cão pobre passa a refletir sobre o que acabara de conversar com o seu amigo. Sem entender o comportamento da maioria dos humanos e, cerrando os olhos, o cão pobre adormece embalado por sua retidão de caráter.