Relatos do inverossímil V

Cinco dias após a última vez que o cão pobre estivera em conversa com o cão rico e, sem dissimular sua ansiedade pela ausência do amigo, o cão pobre resolve realizar uma caminhada pelos arredores numa tentativa de amenizar a doída saudade dos proveitosos colóquios.

Era domingo; manhã translúcida, engalanada pelos raios de um sol dourado; flores nos jardins numa ostentação de cores multíplices; fragrâncias odoríferas num cerimonioso convite ao ócio. Oh natureza amiga; quanta beleza contida nas coisas mais simples; na brisa suave a beijar-nos a fronte; no chilrear dos pássaros. É a natureza a cantar a canção da primavera impregnando-nos de amor.

De repente o cão pobre vislumbra uma silhueta à distância. Se posiciona melhor e para gáudio do seu coração percebe, com nitidez, a figura tão esperada do seu dileto amigo. Exulta; rejubila diante do almejado encontro.

--- Que prazer revê-lo; ao que me parece muito bem de saúde, não ?

--- Fisicamente sim; no entanto punge-me n'alma uma dor que maltrata ferindo-me o coração impediosamente.

--- Algum acontecimento trágico levando-o a esse estado desolador no qual te encontras ?

--- Ontem à noite após o jantar as pessoas lá de casa estavam reunidas na sala e, repentinamente, alguém comentou uma notícia contida num dos jornais da cidade, deixando-me sobremodo entristecido.

---Será que a tua tristeza procede ? Notícias contidas na imprensa quer escrita, quer falada na maioria das vezes não merece crédito. Procuram de forma sensacionalista impressionar as pessoas. Desse modo, os jornais aumentam as suas vendas e, consequentemente, os seus lucros.

--- Pois é; durante quase toda a noite passada não conseguí conciliar o sono. Tentava de todos os modos encontrar uma forma menos contundente de lhe transmitir o que ouvira uma vez que atinge-o diretamente.

---Não se preocupe, use de toda a franqueza pois mais uma, menos uma notícia desagradável não me abalará. À medida que os anos passam vamos suportando com mais sobriedade as agruras da vida.

--- É que segundo os comentários qje tive oportunidade de ouvir fiquei sabendo que as autoridades da nossa cidade estão elaborando um plano de extermínio para os cães que vivem abandonados nas ruas; os ditos cães sem dono. Tal plano, segundo me fora dado depreender, constaria de uma câmara de gás na qual seriam postos nossos irmãos e, em poucos segundos estariam mortos por asfixia. Mais um holocausto a ser perpetrado pelos humanos.

--- Isso já não é a primeira vez que ocorre e cada vez que se repete vem revestido de uma execrável hediondez. Há algum tempo passado, quando eu era ainda muito jovem, ocorreu um fato dessa natureza resultando no extermínio de inúmeros irmãos nossos. No entanto, quando a notícia ganhou asas, uma boa velhinha que reside numa das favelas próximas daquí me recolheu à sua casa impedindo que viesse a me tornar mais uma vítima de tanta crueldade. Felizmente para a alegria de nossos corações ainda existem pessoas caridosas; pessoas desprovidas de egoísmo que se preocupam com o bem estar do próximo. Depois de um certo período de tempo na sua companhia, dividindo com ela um cantinho no seu humilde casebre, retornei à rua; ganhei novamente a liberdade uma vez que não me acostumo mais viver entre quatro paredes. Jamais esquecerei o seu gesto altruístico; serei grato até o final dos meus dias.

--- De qualquer modo gostaria de previní-lo. A maldade que faz morada na alma de alguns humanos é tão grande que mais uma vida, menos uma vida não fará diferença a sua sede assassina. Para essas pessoas a vida do próximo é coisa de somenos importância. São uns verdadeiros desapiedados.

--- Desde cedo, ainda a desfrutar da minha juventude; quando a vida se me parecia destituída de tanta maldade, aprendí que a condição "sine qua non" para a salvação consistia no perdão, na caridade e no amor.

--- Ah meu amigo como as suas palavras são enternecedoras a ponto de deixar-me emocionado. Como são diferentes daas que ouço amiudamente lá em casa. As pessoas que lá residem parecem que não têm coração. Estão sempre afirmando que se deve retribuir uma ofensa com outra; se deve pagar com a mesma moeda; isto é "dente por dente, olho por olho". A célebre lei de Talião. O perdão é para eles apanágio dos fracos. Se alguém te magoar, se alguém te ferir, deverás também magoá-lo; deverá ferí-lo do mesmo modo como desforra.

--- É; mas o perdão, o ato de perdoar verdadeiramente só é acessível às almas superiores. Quantas de vezes de forma voluntária ou involuntária nós ferimos; nós magoamos alguém e como gostaríamos que esse alguém nos perdoasse, não é verdade ? De sorte, para que possamos ser perdoados é preciso que, de antemão, perdoemos. Não seria um flagrante contra-senso agirmos de forma diferente ?

--- Entusiasmado o cão rico declara --- caridade, nem falar; é palavra inexistente no diacionário deles. Estão sempre afirmando que cada um procure ganhar a vida com o seu próprio suor e não esperando pela ajuda dos outros. Agora mesmo estou a lembrar um fato que presenciei o qual me deixou bastante contristado. Um homem já bem idoso e com grande dificuldade para se locomover acercou-se de um dos irmãos da minha dona solicitando um auxílio para que lhe fosse possível aviar uma receita médica, uma vez que a sua mulher se encontrava enferma necessitando de determinado remédio e que naquele momento estava sem condições de adquirí-lo. Foi o bastante para que o rapaz enfurecido pela abordagem do ancião começasse a detratá-lo. Que não tinha por hábito sustentar malandro; que fosse trabalhar ao invés de solicitar a caridade alheia. Ou, por outro lado, que a velha morresse.

--- Como as pessoas se enganam. Não acreditam que dinheiro, que fortuna são bens perecíveis. A vida tem sido pródiga em exemplos de pessoas que viviam nababescamente e, de repente, se viram na rua da amargura; perderam tudo que possuiam de material. Empobreceram num piscar d'olhos. O único bem imperecível; o único bem que o tempo não destrói; o único bem que perdura eternidade afora consiste nas boas ações que praticamos. O ato de perdoar alguém; estender a mão a quem se encontra necessitado; o amor dispensado ao próximo representam a maior fortuna que alguém poderia desejar. Tudo o mais é fortúito; é acidente de percurso; é passageiro diante da eternidade. Dizem que os únicos que não são passageiros são o motorista e o cobrador. Todos os demais o são.

Ah, como o mundo seria diferente se os humanos pensassem e agissem como você afirma ! A miséria seria banida; desapareceria a dor; haveria um maior congraçamento entre as pessoas como se fora uma única família. Será que alcançaremos tudo isso algum dia ?

Se bem que perdão, caridade e amor ao próximo não são coisas fáceis como parecem à primeira vista. Veja você quantas vezes afirmamos haver perdoado se guardamos mágoa em nossos corações! Seria perdão ? Outras vezes para nos livrarmos de algo que está sobrando damo-lo a alguém; isso é caridade ? A verdadeira caridade consiste em darmos a alguém aquilo que esse alguém está necessitando. Muitas vezes uma palavra de conforto, um sorriso, representam a verdadeira caridade. Muitos acreditam que caridade é você colocar uma moeda nas mãos de quem suplica.

---Quanto ao amor é muito fácil amarmos pai, mãe, irmãos, filhos. Difícil mesmo é amarmos a quem nos fez mal; amarmos os nossos desafetos. Este sim representa o verdadeiro amor; o amor cristão.

Logo em seguida, como um fenômeno cíclico, a tarde vai desaparecendo lentamente; o sol no poente conferindo ao então azul do firmamento uma tonalidade escarlate enquanto as sombras da noite nostalgicamente prenunciam o final de mais um dia.

wellmac
Enviado por wellmac em 21/11/2010
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