Relatos do inverossímil IV
Não fora alguns compromissos nossos de caráter inadiável obrigando-nos a uma prolongada ausência aquele aprazível recanto, certamente não teríamos sido privados dos conceitos emanados daqueles seres considerados irracionais. Irracionalidade essa que, se nos permite o leitor ou leitora, passamos a questionar quando diante da imensurável proficiência concernentes às opiniões emitidas pelos referidos cães. Não que todos os humanos, sem exceção, sejam incapazes de ações nobilitantes; longe disso. No entretanto, apesar de sermos considerados como seres racionais somos, muitas vezes ainda, protagonistas de ações reprováveis capazes mesmo de denegrir a dita superioridade da espécie humana.
Certa ocasião, na qualidade de ouvinte privilegiado já que de modo algum nos caberia o direito de participar da conversação entre os cães, percebemos nitidamente quando o cão pobre, sem meias palavras, asseverou ao seu amigo que o amor é o único ato racional. Diante disso, maior não poderia ter sido a nossa perplexidade.
Ao nos retirar dalí passamos a refletir sobre o que acabáramos de ouvir. Recordamos tempos idos onde aprendemos que os seres situados numa escala inferior a dos humanos era dotados apenas de instinto sem vestígios de racionalidade. Ainda, rememoramos alguns ensinamentos filosóficos que tiverámos onde asseveravam que o homem era um ser essencialmente racional enquanto que os demais seres eram dotados apenas de instinto. Que este era transmitido de geração à geração; de ancestrais à descendentes já pronto sem a necessidade de aprendizagem. Que era através dele que os animais procriavam, alimentavam e defendiam suas crias contra prováveis predadores. Enquando que racionalidade, por outro lado, atributo exclusivo dos humanos, se auferia através de uma aprendizagem contínua. Puro engano nosso. Os animais, sobretudo os caninos, cuja convivência nos tem proporcionado valiosa aprendizagem são dotados também de racionalidade. Haja vista que além de prover a subsistência dos seus filhos, logo após o nascimento, conferem-lhes desmesurada proteção. Sem falar, obviamente, na fidelidade e dedicação ao seu dono como retribuição aos bons tratos que lhes são dispensados. Não poderiam tais procedimentos serem considerados como magnânima prova de amor ? E o amor, ao que nos parece, não se constitui num verdadeiro ato de racionalidade ?
Mas deixemos de lado tais conjeturas; adiemos para uma outra oportunidade uma vez que o cão rico na companhia da sua dona acabaram de sair do prédio onde residem e se dirigem à praça onde já nos encontramos nós e o cão pobre. Desculpem-nos a inopinada interrupção pois a conversa de logo mais se prenuncia deveras auspiciosa.
---Olá amigo, boa tarde --- se dirige o cão rico ao cão pobre.
--- Boa tarde --- responde-lhe o cão pobre. Estava saudoso diante da prolongada ausência do amigo.
--- É. Na verdade a minha ausência resultou de um prolongado final de semana na fazenda pertencente à família da minha dona, situada num dos mais belos recantos que me fora dado a conhecer. Como a natureza é pródiga! A mim, me pareceu se tratar de um pedacinho do céu. Extensos campos verdejantes onde o gado pastava numa graciosa calma silente conferindo-lhe estonteante beleza. Matas que mais pareciam verdadeiras florestas virgens entrecortadas, aquí e acolá, por córregos de água diáfanas. Adorei.
--- Tudo isso meu amigo --- interrompe o cão pobre ---somente poderia ser obra do Grande Arquiteto. Pena que os humanos, imbuídos tão somente pela ganância de lucros fáceis e ao se auto afirmarem como seus verdadeiros proprietarios não se envergonhem de cometer tanta agressão ao que de direito pertence a todos nós e não somente a alguns.
--- Lá mesmo na fazenda o que se vê é uma ensandecida e deplorável retirada de madeira das matas, levando ao sacrifício árvores e mais árvores algumas vezes centenárias sem a preocupação de um adequado reflorestamento. Não se apercebem esses senhores que a natureza uma vez agredida vai se tornando à cada dia mais inóspita para os seres que dela dependem. Infelizmente eles não possuem uma conscientização ecológica; não se importam com a má herança que destinarão aos seus descendentes --- declara o cão rico.
---Mas, ao que me parece, já existem orgnizações não governamentais que diante de crime tão nefasto contra a natureza estão arregimentadas no que concerne a uma maior conscientização quanto a sua preservação.
--- Mudando de assunto --- diz o cão rico, procurando evitar que a sua donas tomasse conhecimento daquilo que passaria a expor. A finalidade da reunião da família na fazenda durante todo aquele final de semana prendia-se a questão da herança que cada um deles iria auferir. Mesmo antes do velho patriarca falecer todos já estavam de olho nos seus bens pois o velho, além da idade provecta bem avançada, é portador de pertinaz moléstia que provavelmente abreviará seus dias por aquí entre nós. Desse modo, o que mais me surpreendeu foi a ingratidão dos filhos diante de uma situação de extrema delicadeza. Pelas conversas nos bastidores pude perceber de forma insofismável que a maior preocupação deles era quanto a demora do velho expirar, retardando a posse definitiva dos bens que o infeliz deixaria. Em nenhum momento; em nenhuma ocasião presenciei alguém que demonstrasse tristeza diante do iminente desenlace. Somente acaloradas discussões quanto a partilha a ser efetuada; qual o valor que seria destinado a cada um dos herdeiros.
A essa altura o cão rico despede-se do cão pobre, prometendo numa outra oportunidade continuar o assunto.