Relatos do inverossímil II

Passados alguns dias os cães voltam a se encontrar na mesma situação, restabelecendo-se a conversa. Desta feita por iniciativa do cão pobre que pergunta:

---E você, aonde é que mora?

---Moro al´´i em frente, naquele prédio suntuoso, num apartamento que mais parece uma mansão. É tão grande o luxo da família da minha dona que mais se assemelha a um palácio. Só que vivo entre quatro paredes sem ver o mundo lá fora. Como gostaria de contemplar o céu numa noite enluarada. Contar as estrelas que brilham no azul celeste. Mas lá dentro, mormente o conforto que desfruto, vivo triste, enclausurado.

--- Mas lá na sua casa você tem abrigo e tudo o mais que necessita, nada lhe faltando, não é verdade ?

---Realmente é verdade ---responde-lhe o cão rico. Apesar de todas as conveniências não me sinto um cão feliz. Veja você que até para sair um pouco, somente na companhia da minha dona e, mesmo assim, refém dessa coleira. Lá em casa os dias são de uma monotonia à toda prova. As pessoas que lá residem passam todo o tempo se queixando da vida sem valorizar o tanto que possuem. Parece que quanto mais têm, mas desejam. Não tenho dúvida quanto a infelicidade deles. Vivem constantemente angustiados com medo de perderem o que possuem; medo de serem assaltados pelos meliantes nas ruas; receio de que seus filhos sejam sequestrados diante de uma situação por eles mesmos criada em razão da triste concentração de renda nas mãos de tão poucos em detrimento da maioria miserável. Pobre gente rica. Por mim, tenho tudo de bom e do melhor que um cão poderia desejar. Durmo numa cama com colchão bem macio no quarto da minha dona, com ar refrigerado, livre do calor. Minha comida, apesar de farta, consite numa ração balanceada que dizem ser rica em proteínas, vitaminas e sais minerais. São umas bolinhas duras e sempre com o mesmo sabor sem variar. As vezes sinto o cheiro da comida que vem lá da cozinha; carne assada, galinha que me deixam com água na boca. Porém não permitem que me sirva desses alimentos, nem mesmo um ossinho para me distrair, com a falsa argumentação de que me fariam mal; o meu pelo cairia. Somente Deus é testemunha da tristeza que me invade.

---Mas se você adoecer tem quem lhe cuide, não é mesmo ? ---pergunta-lhe o cão pobre.

--- Sim. De tempos em tempos me levam ao médido veterinário. Lá, além de banho e tosa, o doutor me aplica umas vacinas que dizem me imunizar contra uma série de doenças, inclusive a raiva. Nesse ponto sou muito bem cuidado.

--- E seus pais moram com voc?e ?

---Não --- re´sponde-lhe o cão rico. Meus pais eram campeões da raça daí eu ter sangue puro. Logo após o meu nascimento minha dona me adquiriu por uma boa soma de dinheiro quando eu ainda era lactente. Daí, nunca mais tive notícias dos meus pais nem dos meus irmãos uma vez que cada um de nós foi para um lugar diferente. Sinto-me, na verdade, órfão de pai e mãe.

---Oh meu bom amigo, como pode um cão que nada lhe falta de material se sentir tão infeliz ? assevera o cão pobre.

--- Falta-me, tenha certeza, o bem mais precioso que Deus concedeu as suas criaturas: a liberdade. O direito de ir e vir, o uso do seu livre arbítrio.

--- Realmente --- retruca-lhe o cão pobre. Eu, da minha parte, não tenho casa para morar, vivo na rua; durmo ao relento tendo o céu estrelado por cobertor. Muitas vezes tenho que procurar algo para saciar a fome quando não dependo da boa vontade daquela minha amiguinha. Mesmo assim, apesar de tudo, não trocaria a minha vida pela sua. Sou grato a Deus pela minha extrema felicidade. Posso ver a lua e as estrelas nas noites cálidas de verão; tomar banho de chuva; ir e vir livremente sob as minhas expensas sem coleira a prender-me no pescoço; sem ainda que haja alguém para dizer-me o que posso e o que não. Sou um cão pobre mas livre. Não trocaria por nada nesse mundo a liberdade que Deus me deu. Infelizmente os humanos pensam que somos seus objetos; que não temos sentimentos. Do mesmo modo que nos entristecemos quando maltratados; quando nos privam da nossa liberdade; também nos alegramos quando nos afagam; quando nos dirigem uma palavra de carinho; quando dividem conosco um pouco de alimento; quando nos permitem exercitar nossa liberdade. Daí costumarem referir que nós somos dotados de uma fidelidade canina.

De repente a dona do cão rico se levanta, ordenando-lhe para que não se aproximasse daquele cão vadio; daquele cão vira-lata. Que evitasse qualquer contato para não correr o risco de contrair doenças nem ser infestado por pulgas.

Em obediência às órdens da sua dona, o cão rico se despede do seu amigo e, sem esconder a sua tristeza não é capaz de impedir que duas lágrimas rolem dos seus olhos.

Ao perceber a profunda mágoa que se apoderara do cão rico o cão pobre conjetura de si para consigo:

- Haverá de chegar o dia no qual os humanos serão como nós caninos; deixarão de julgar aos demais pela aparência e passarão a julgá-los pelo que o são na realidade. Não perderemos por esperar.

wellmac
Enviado por wellmac em 18/11/2010
Código do texto: T2621985