A INTRIGANTE FELICIDADE
A INTRINCADA FELLICIDADE
Ele era assim. Sempre que algum problema inusitado aparecesse – sentindo-se impotente para resolvê-lo – seu espírito sofria as conseqüências. Ficava calado e triste. As fontes latejavam e, aí sim, não encontrava saída mesmo. A verdade em tudo isso era que Fortunato era um homem muito preocupado com a sorte e a felicidade dos outros. Isso, que deveria ser um dom – e o é – para ele se transformava em uma pedra pontiaguda dentro do sapato. Machucava-o demais. Sempre que acontecia algo correlato com a infelicidade de algum amigo ou amiga, seu coração se condoía ao ponto de refletir em seu estado emocional. Ao normal era alegre e brincalhão. Mas esses acontecimentos faziam dele um homem amargo e ensimesmado. Talvez isso lhe acontecesse porque era romântico ao extremo.
Vendo em cada alínea da vida um sofisticado trampolim para a felicidade, as coisas que não contribuíam para isso lhe traziam esse desconforto. Mais, ainda, quando via no alvo atingido um quase desinteresse para se livrar do carma que o aflige. Sabendo, embora, que esse “desinteresse” respondia pelo nome e sobrenome de “medo” das consequências do seu ato de defesa em se tratando de assunto jurídico, não cabia em si entender que não houvesse sequer uma jurisprudência de que se valer para minorar as desforras que lhe sobreviessem. O assunto atual era sua visita ao hospital para ver uma amiga que sofrera um atentado homicida por parte de seu ex-marido. Isso não teria acontecido se as autoridades tivessem agido por conta do BO que ela registrara dias antes, mas tinha medo de abrir o competente inquérito. Isso não quer dizer que as mulheres não são guerreiras e não lutam para defender seu espaço, mas, porque são perspicazes, sensíveis à percepção do certo e do errado e previdentes e precavidas Sabem que não estão lutando somente contra o vilão caseiro, mas contra uma corporação com raízes profundas ainda no século XIX, cujas ações alcançam, com plena força, a nossa era.
Fortunato entendia que certos Estados da confederação já deram passos à frente nesses intrincados labirintos legais. Entendia, também, que dependia somente do interesse e da boa vontade das autoridades constituídas, mormente as do Ministério Público das Varas de Família – a defesa nata dos oprimidos pelos maus tratos acontecidos nos recintos do lar.
O fato é que, quase sempre, o socorro vinha quando já era tarde demais. Quando por assassinato tinha que ser punido o réu e não pelos maus tratos, anteriores a este ato estremo. Fazia crer, para quem visse de fora, que essas autoridades supunham que fosse da mulher e não do homem, a culpa desse autoritarismo machista e das consequências dele provindas.
Conversava, vez por outra, sobre o assunto com seu amigo Waldemar, que estava cursando direito numa das universidades locais. Todas as vezes que isso acontecia, o problema enfocado era sempre o mesmo – a falta de preocupação das autoridades superiores que poderiam assumir uma postura mais dinâmica para o problema.
– Parece até que essa Lei Maria da Penha protege os homens e não as mulheres, argumentou com seu amigo Waldemar.
– Embora tenha lido no noticiário dos jornais que alguns Estados já estão conscientizados, através do Ministério Público, da necessidade de chegarem às autoridades judiciárias os Boletins de Ocorrência feitos por vítimas desses absurdos acontecimentos domésticos, em sua maioria absoluta, outras autoridades ainda esperam que aconteça o pior para tomarem as providências cabíveis.
– O que não posso entender é que, se pela constituição, todos somos iguais perante a lei, como é que essa lei Maria da Penha, criada com o fim único de prevenir os abusos domésticos contra a mulher, está sendo tão mal executada em sua finalidade. Quando deveria ser a bandeira protetora das mulheres oprimidas por esse desrespeito à sua dignidade, é só mais uma lei para dizer que existe, mas a ninguém protege.
– Sabe o que deveria de acontecer? Acho que as Varas de Família, através dos seus promotores e defensores públicos, deveriam pedir uma regulamentação de âmbito federal, para valer em todo o território nacional, obrigando, inclusive, todas as delegacias a mandarem, independente de desejo formal de abrir processo contra os agressores, para os juízes dessas varas da sua comarca. Assim, mesmo que a vítima tenha medo de agir, temendo as consequências funestas, os juizados estariam de posse dessa informação e aptos a agir, cujas providências seriam tomadas imediatamente contra esse tipo de criminosos.
– É uma ótima ideia, meu amigo. Entendo que alguma coisa de positivo terá que ser feita em prol dessas sofredoras mulheres. O “como” e o “o quê” deveria ser ampla e urgentemente discutido a quem de direito. Faz-se tantos simpósios, seminários e audiências públicas por assuntos, muitas vezes, corriqueiros e, quando se trata de vidas humanas, impera o silêncio dos homens da lei.
E assim conversando e expondo suas ideias, se nada puderam fazer de positivo, levaram a certeza de que, pelo menos, houve um desabafo de mútuas indignações convergentes.