Língua Viva

Eram quatro irmãos muito diferentes. Cada um encerrava em si uma característica peculiar que bem o distinguia dos demais, a começar por seus nomes incomuns para substantivos próprios. Sua mãe era uma adorável professora de gramática portuguesa, o que ocasionou nas idéias insólitas para os nomes dos filhos.

O mais falante era o Travessão, que tinha uma língua incontrolável, não sendo possível alguém neste mundo achar mais prazer em conversação do que ele. Dizia e desdizia, argumentava e contrariava, falava de flores e estórias de horror, de tempos passados e de perspectivas futuras, contava histórias, narrava viagens, proclamava seu indizível amor pelo discurso. Enfim, nutria verdadeira paixão pela fala. Não foi sem motivo que fora escolhido, por unanimidade, o orador da sua turma na formatura da escola, impressionando a todos os presentes com sua eloquência de “gente grande”, como dissera-lhe sua professora mais tarde. “Vai ser político, e dos bons, este peste” predizia a tia, para o desagrado da mãe que não via com bons olhos a tortuosa carreira e para a total felicidade do pai, pois este já mirava as férias em ilhas paradisíacas, proporcionadas pelo montante dos cofres públicos.

Mas sua tagarelice nem sempre lhe rendia bons frutos. Certa vez, estando toda a família reunida em torno da mesa para a ceia de Natal, deu-se a desordem. Travessão, que ouvira sorrateiramente, dias atrás, uma história contada pela mãe ao pai sobre uma aventura adúltera da mesma tia da profecia política, não conteve sua ânsia e desembestou a revelar o conto fantástico, inclusive a parte do “avião entrando no aeroporto clandestino” ouvida pela mãe e sem saber o que significava aquilo. Houve silêncio geral, a tia embasbacada, sem saber o que dizer, sem ao menos negar o ocorrido. De repente vem o estouro do tio, chispando fogo nos olhos e cuspindo xingamentos, aumentando a desorientação dos comensais. O homem traído saiu pisando firme e ainda bradando palavrões. A mulher adúltera saiu ao seu alcance logo depois, também aos gritos: “Que político, que nada! Este menino será um mexeriqueiro daqueles!”. Pronto, estava arruinado o Natal.

Parênteses era completamente o oposto do irmão, era calado. Mas com um porém, sim, isso, sempre tinha um porém. Pra qualquer coisa que falavam ele arranjava um entretanto, um todavia. Raramente dizia, mas quando dizia... Também gostava de dar explicações às coisas, não gostava de deixá-las no ar, vagas, devia completá-las. Era inteligente e sempre tinha um porque, além de um porém. Isso desgostava Travessão, que não se alegrava em ver suas idéias contrariadas ou completadas por Parênteses.

Nesta família se encontrava um pragmático, o Exclamação. Vivia da objetividade, era um sujeito seguro e imperioso, muito imperioso. Não faltava quem o achasse arrogante e insolente por isso. Desde pequeno se acostumara a desobedecer as ordens dos pais, e este mau hábito passou para os tempos de escola, exasperando qualquer professor, dos mais pacientes e tolerantes aos mais intragáveis mestres. Aliás, tal caráter resultou em muitas advertências da diretora e no cansaço dos pais de tanto terem que ouvir reclamações a seu respeito. Que rapazinho mais mal-criado! Custava ser mais maleável? Pra ele era tudo não! Não! E não!

Exclamação frequentemente arranjava um entrevero com o outro irmão, que ainda resta ser apresentado: o Interrogação. Ele era muito cético e extremamente curioso. Disso provou o pai, quando o menino, no auge de sua inocência infantil, veio lhe indagar sobre um dos mistérios que mais lhe intrigava: a origem da vida. Ou “como o neném entra na mamãe”, nas palavras do pequeno, na ocasião. Não acreditou em cegonha nenhuma, tampouco em sementinha de melancia. O pai, pego de surpresa e todo atrapalhado, meio gaguejando, inventou então uma estória ridícula qualquer: uma injeção que permitia a formação de um bebê dentro da barriga da mulher. Só esqueceu do fato de que a sua mulher sofria de abominável fobia à agulhas e objetos pontiagudos, o que bem sabia o filho. Fatigado das dúvidas do menino sobre o impertinente assunto, mandou-o para o quarto e castigou-o com um mês de clausura. E sem direito a perguntas! Ele era assim, a tudo interrogava, duvidava, filosofava, enfurecia. Enfurecia principalmente Exclamação, com quem discutia muito, conforme supracitado.

De um lado, o pragmático. Do outro, o cético. Não podia dar em boa coisa e, de fato, não dava. Travessão era, de praxe, o intermediário das brigas, tentando sempre acalmar ambos os lados com seu discurso pró-diálogo. Como na vez em que começaram um desentendimento por um motivo banal qualquer. Enquanto um afirmava e impunha sua opinião, o outro a questionava indefectivelmente, com umas perguntas muito complicadas. Exclamação sustentou o debateboca até determinado ponto, a partir daí não mais suportava a insolência do irmão. Inchou o peito e soltou um grito descomunal!

!!!!!!!!!!

“Mais que diabo de mania de ficar berrando como um louco. Por acaso você acha que é o dono da verdade?”, indignou-se Interrogação. “Ele adora uma brigaiada” completou Parênteses. O entrevero só findou quando Travessão mais uma vez veio apartar. Ficou tanto tempo falando e falando, que, fatigados, ambos os briguentos foram arrumar com o que se ocupar.

Esses são os quatro irmãos, exóticos no nome e opostos de caráter. Aliás, eram os quatro irmãos. E não é que sua mãe tratou de engravidar novamente? Por aí vinha mais um no mundo. Já tinha até nome escolhido: Reticências.

Ah, essa estória que agora não tem mais fim...

Douglas P
Enviado por Douglas P em 12/11/2010
Reeditado em 13/11/2010
Código do texto: T2612454
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