O Amor é Cego...

     Quando tinha 20 anos, Ademar foi vítima de uma fulminante infecção  ocular que, atingindo as córneas dos seus olhos, o deixou duplamente cego. Namorava com Júlia, uma bela e faceira moça de olhos verdes, que logo o abandonou, atrás de um homem que enxergasse melhor as suas belezas morenas.
     Até pareceu castigo, pois Ademar era um rapaz extremamente vaidoso, não só em relação à sua aparência pessoal, mas também quanto à aparência das moças com quem namorava. "Se me virem abraçado com mulher feia antes da meia-noite, podem ir correndo separar, pois com certeza só pode ser briga", dizia todo cheio de si para os amigos e conhecidos.
     Mas, nada havendo a fazer senão matar-se ou aprender a viver sem enxergar,  Ademar optou pela segunda alternativa, entrando para uma escola de cegos, onde aprendeu o Braille e outras coisas necessárias à sua vida de cego, mas independente. Na escola conheceu Tereza, uma cega de nascença, de voz, mão e beijo suaves, e assim, sem nunca terem se visto na vida, apaixonaram-se perdidamente um pelo outro.
     Então, um dia, a surpresa: o serviço de doação de córneas de um  hospital avisou-lhe de que um jovem houvera tido morte cerebral e a família resolvera doar todos os seus órgãos. Na fila do transplante há mais de uma década, Ademar estava na vez para receber uma córnea. No primeiro momento, Ademar quase explodiu de alegria, mas depois ensimesmou-se em angustiantes reflexões: ele amava Tereza, decerto, mas enxergara até os 20 anos e conhecera - e cultuara - a beleza de um corpo e de um rosto feminino. Como seria Tereza, ou melhor, como ele veria Tereza?
     Ademar tinha um prazo de 24 horas para aceitar ou rejeitar a córnea e, numa aflição medonha, ligou para Dione, uma amiga de infância, a fim de pedir a sua ajuda:
     - Dione, minha amiga, preciso de um favor seu, urgente! Quero que você venha imediatamente à escola de cegos que frequento. Estarei conversando no pátio com uma moça. Observe-a atentamente - com olhos críticos de mulher - por uns 30 minutos. Depois, ligue para mim e a descreva fisicamente, diga como ela é, da cabeça aos pés.
     - Pô, cara, não estou entendendo. Que história é essa?
     - Não é pra entender, Dione, é pra fazer. Por favor, vai me ajudar ou não?
     - Tudo bem, logo mais estarei aí.
     Quarenta minutos mais tarde, Dione ligou para Ademar:
     - Cara, essa moça é gente boa?
     - Sim, é a ternura em pessoa. Coração de ouro, todos aqui a adoram.
     - Então, está provado que "Quem vê cara não vê coração"...
     - Por quê?
     - Olha só: feiosa, magra, ossuda, seios flácidos que escorrem para uma já protuberante barriguinha, canelas finas como bambus. Ainda por cima, dentuça. Tá bom ou quer mais?
     - Chega, Dione, chega! Obrigado, tchau...
     Uma hora mais tarde, chorando baixinho, Ademar ligou para o Hospital:
     - Alô, sou o Ademar e fui selecionado para fazer um transplante de córnea.
     - Ah, sim, quando você vem para o hospital?
     - Não vou. Desisti do transplante. Dêem a córnea para outra pessoa.
   


Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 08/11/2010
Reeditado em 10/11/2010
Código do texto: T2604257
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.