O jardineiro e a sacerdotisa.
Algumas historias começam por eventos caudados por seres que não tem influencia alguma no desenrolar da historia em si. A não ser a de meros propulsores do movimento inicial das engrenagens do destino. Quem girou as rodas do destino dessa vez foi o poderoso deus das águas, sem saber porquê ele lançou uma enorme torrente de águas sobre o Reino das Garças. Como adagas velozes as gotas caiam por todos os lados, machucando habitantes que corriam em busca de abrigo enquanto ao mesmo tempo os braços fortes e destruidores do deus dos ventos (irmão do deus das águas) levantava telhas, derrubava velhas paredes e pobres barracos.
Algumas sacerdotisas de um templo belo, feliz e acolhedor, esconderam-se no salãomor e pelos vitrais visualizavam a brincadeira indecente dos dois deuses que por puro prazer inconseqüente destruíam o jardim do templo.
Ao amanhecer, elas saíram para verificarem o tamanho do estrago, e outra chuva desabou sobre o templo... Uma chuva de lágrimas, tristeza e desolação das sacerdotisas que perderam seu jardim, símbolo máximo do poder de sua deusa.
Convocaram para o serviço hercúleo, magnânimo e imediato de reconstruir em seus mínimos detalhes o jardim vermelho das rosas divinas, o mais talentoso de todos os jardineiros. Era ele uma pessoa de simples berço, pouco conhecedor de livros e regras, ignorante das coisas divinas e humanas, porem tinha sido agraciado com o dom de manipular as flores, de fazer com que o verde obedecesse a sua vontade e florescesse ao seu belprazer.
Possuía o pobre jardineiro pouco tempo para reconstrução, faltava exato um mês para o ritual de encanto das sacerdotisas e era o jardim elemento essencial para tal. Ao dever de auxiliá-lo foi escolhida a mais jovem acólita.
Ao raiar do sol, no primeiro dia de labor, lá estava o jardineiro com seus apetrechos. Começou então por retirar as plantas mortas, triste do estrago feito por deuses tão levianos e não respeitadores do que era belo. À exato um passo do carro do sol, atrasada como de costume, a acolita chegou ao jardim. Era alva como as pétalas do lírio, comprida e esguia como as lindas garças que davam nome ao reino. Seus membros eram como hastes, finas e bem trabalhadas, esculpidas em mármore pelo melhor dos artífices. Vestia um simples, e talvez já ligeiramente roto vestido, de um rosa já batido, diversas vezes lavado, indicando um berço talvez tão simples quanto o do jardineiro. Isto talvez só tenha reparado o jardineiro depois de um tempo, pois no momento inicial foi ele absorvido pelo seu rosto: olhos cândidos, simples, castanhos como os de qualquer um, mas donos de um brilho escondido, além é claro dos cabelos compridos e loiros.
Perguntou ela timidamente em que poderia o ajudar. Pensou ele que a existência dela o ajudava, mas como era uma sacerdotisa, pensava ele que seria inútil tal flerte. Os dias foram passando, ele ficava com a maioria do trabalho, enganando-a, fazendo com que pensasse ser útil quando na verdade não sabia nada ela de sementes, flores, nem do verde nem do vermelho.
Quando a primeira semana passou foi para o jardineiro um suplicio o dia sagrado do descanço, pois ficava ele longe da acolita, era um hiato na felicidade da contemplação da beleza simples.
Ao fim de duas semanas estava ele perdidamente apaixonado, e o jardim fulgurava já quase pronto. As flores nasciam com uma rapidez mágica e uma beleza incomum, a beleza do desejo, a beleza da vontade, a beleza forte e ofensiva do querer bem. Era por isso que os dias de trabalho passavam com uma velocidade que só o deus do tempo é capaz de criar, quando duas pessoas se gostam e se entrelaçam, e por puro capricho o tempo se esvai, feito a areia entre os dedos.
Como o tempo é caprichoso foi ele passando, e no dilema dos amantes tímidos ficava o jardineiro. Passava as noites ponderando se ela realmente poderia o amar, rememorando cada momento do dia passado em busca de mínimas nuances que indicasse um pequeno gostar que seja. Encontrava, as vezes, na maneira com que ela lhe trouxe água, em como elogiou seu dom de lidar com a terra, na medida que demonstrava interesse nas coisas do verde que ele falava, nos momentos em que com uma displicência, talvez falsa, ela deitava-se ao sol enrolando os cabelos entre os dedos e o vento, dessa vez com bondade, brincava em seu vestido mostrando um breve átimo de coxas. Mas logo o grilhão da ordem monástica o açoitava: era ela uma sacerdotisa e como bem ele imaginava como tal não poderia possuir um amor.
E preso a tais pensamentos não viu que o tempo acabou. Estava findo o trabalho da reconstrução do jardim. Fora executado com uma perfeição inigualável. Era, não como se o jardim houvesse sido replicado mas sim como se o antigo jardim tivesse florescido esse ano em seu maior esplendor. Recolheu seus instrumentos de trabalho, com a lentidão dos que odeiam o caminhar eterno do carro do sol, recebeu seus honorários juntamente com encantados elogios. Recebeu também o convite de sempre que desejasse visitar o templo, mas certeza ele tinha de nunca aceitar, triste de ter um amor impossível.
Caminhando, sem olhar para trás foi o jardineiro embora, casmurro por não ter revelado seu amor.
Pela janela do templo lágrimas rolavam, lágrimas do arrependimento de não ter quebrado as fortes muralhas da timidez e assim revelar ao jardineiro que sendo uma sacerdotisa da fertilidade poderia ela ter um amor. Quem sabe por ironia dos deuses ele me amasse também...