DEUS MEU, QUE MAL TE FIZ !

Em soalheira manhã de Junho, temperada pela brisa ribeirinha, que docemente corria Douro arriba, deambulava sozinho, entre os vendedores da feira das Velharias, versão portuense da lisboeta, a que chamam de: Ladra; quando, inadvertidamente, encaminhei-me por tosca calçadinha, de pedra incerta, que permite acesso ao “Prado de Repouso”.

Confesso que não sou frequentador de cemitérios, e deles fujo sempre que posso; desta vez, impelido por veemente desejo, ao perpassá-lo, assaltaram-me saudades de falecido condiscípulo, velho companheiro dos bancos do velhíssimo “Alexandre”.

Conversamos, pela última vez, na airosa explanada do “ Tropical”, em plena Praça da Batalha, sob agigantado guarda-sol, de pano branco, que mal coava o feroz dardejar do astro-rei.

Caminhava eu, enlevado em altos pensamentos filosóficos, em direcção a “Santo António”, quando senti puxarem-me levemente a manga esquerda do casaco. Estaquei estupefacto. Tratava-se de sujeito: atarracado, roliço, farto de carnes fofas, fronte descampada, barba grisalha, mal aparada, que pachorrentamente sorvia um “Príncipe”, tão loiro, como cabelo de inglesinha.

A custo adivinhei, pelos traços fisionómicos, o “4” da minha antiga sala do Liceu Alexandre Herculano, que de olhos semicerrados, fixava-me acintosamente, através de grossíssimas lentes de míope.

- Já não me conheces, pá?! É natural! Envelheci muito. Sabes como é: a idade não perdoa.

A conversa foi desfiar de velhas recordações, que nem sempre foram agradáveis; até que o Alfredo deixando descair o beiço inferior, declarou-me, em jeito de desabafo:

- Tu não sabes o que foi a minha vida!

Acomodei-me. Pedi ao criado, que girava frenético pelas mesas, um “Fino”,bem gelado.

- Lembras-te de mim?! - Continuou. - Era tímido, encolhido, e nos intervalos visitava o vestiário da Sr.ª Olívia. O que eu conversava com a pobre mulher! Tu sempre saltitando, como alegre passarinho, corrias e brincavas sob as frondosas tílias que umbriavam o recreio.

Assim, nesse suave e amena rotina, decorreram os primeiros anos liceais: sempre só, sempre triste, sempre receando tudo e todos, como cachorrinho espantadíssimo que foge ao primeiro foguete da festa da padroeira.

Como sofri, Deus meu!

Breve começaram-me os infortúnios. Com o adiantar da matéria deixei, inexplicavelmente, de compreender as explicações dos mestres.

Durante horas de teimosia, repisava e decorava as postilas; mas, rapidamente varriam-se da memória, que borboleteava em vagos e fúteis pensamentos.

Tornou-se, então, para mim, a escola, em algoz tortura. Receava que me interrogassem, que tivesse, perante quarenta endiabrados rapazes, de mostrar a minha ignorância. Aterrorizado caia de joelhos, deprecando afectuosamente, à Virgem, que libertasse-me do doloridíssimo tormento de traduzir texto de inglês ou demonstrar simples teorema matemático, que não sabia explicar.

Nessa aflitiva época, em que apareciam-me em sonhos monstros pavorosos e humilhações abjectas, lançava pela estreita ranhura da caixa de esmolas de Nossa Senhora, o dinheiro que tinha para o eléctrico, confiante em “comprar” desse modo, o auxilio da Mãe dos infelizes e desamparados.

Terminadas as aulas, corria pressuroso, pelas ruas da cidade em direcção a casa, temendo e tremendo que viessem a reparar na tardança, e descobrissem, após intenso e impiedoso interrogatório, o destino da semanada.

Depois de repetidas reprovações e vergonhas, que me humilhavam, retiraram-me do liceu, para contentamento meu e certamente alegria dos mestres.

Passados anos encontrei-te numa manhã coberta de névoa, na Rua Formosa. Trabalhava como caixeiro e ia abrir a loja de fazendas, como sempre fazia depois das oito e trinta, e tu se não erro, cursavas Letras.

Quis esconder-me, mas não foi possível. Tinha vergonha que soubesses que não estudava e mais ainda da minha humilde profissão. Frontalmente, tentando ser arrogante, perguntei-te pelos colegas: Uns andavam em medicina; outros frequentavam Direito, em Coimbra, e eram quase doutores.

Fervorosamente, na Capela das Almas, rezei para não te ver mais. A deprecação foi atendida. Só décadas depois, já liberto de medos e receios do futuro sombrio que imaginava, cruzei contigo numa noite chuvosa de S. João.

Enamorei-me. Era a idade das paixões. A jovem, rapariguinha alta, esquelética de rostinho encantador e olhos cativantes, morava em Gaia, filha de abastado comerciante, que em tempos de juventude conhecera minha mãe, na Praia da Granja, onde veranearam.

Tímido como era, receei a rejeição. Mirava-a de olhos derretidos de longe, colado às paredes; por vezes, empurrado pela paixão, encarava-a de frente e meu olhar penetrante cruzava-se com o dela. De imediato a jovem cravava os olhos no chão e eu via-lhe fugirem risos disfarçados pelos bordos dos lábios.

Uma vez, na Praça da Liberdade esbarramos um no outro. Ficou escarlate e sorriu-se e pude observar, emoldurado pelos rubros lábios, a brancura marmórea dos dentes. Vaga inenarrável de entusiasmo encheu-me o peito de contentamento.

Ao conversar, semanas depois, com minha mãe, enchi-me de coragem e confessei-lhe que F…, filha do Senhor M…, gostava de mim.

Ficou apreensiva, de sobrolho arqueado. Negra nuvem de compaixão enegreceu-lhe o semblante moreno. Aconselhou-me a ser prudente. A menina era filha de gente de posse, embora de ascendência modesta. Serviria para meus irmãos, que eram doutores ou para lá iam; agora para mim…Os pais, por certo opor-se-iam a tal enlace, ainda que ficassem honrados com a ligação à nossa família.

Passei o resto do dia a odiar a sociedade que cerceava-me os prazeres; e após larga cogitações, onde não faltaram agressivos impropérios a tudo e a todos, assentei emigrar.

Encheu-me então a alma de festivos sorrisos com a feliz ideia e serviu-me para desviar pensamentos suicidas, que há muito anoiteciam-me espírito.

Pela segunda vez fui atacado pela paixão. Agora era filha de industrial de Águas Santas, que frequentava o quinto ano do Colégio de Nossa Senhora da Esperança.

Concluída a aula da tarde, a moça vinha realizar o trabalho de casa, na viatura da mãe: um Anglia de cor preta, que sempre se encontrava entre as folhudas tílias que ornamentam a Av. Rodrigues de Freitas.

Contemplava-a embevecido em êxtase quase divino, horas a fio. Com o tempo e sagacidade própria da adolescência a rapariguinha adivinhou as intenções e atirava-me uns olhares de soslaio, ocultando com a mão os lábios no intuito de esconder risinho maroto.

Ao cair da noite de invernoso mês de Novembro, estava encostado ao muro de pedra do colégio. Lia ou fingia ler “ A Voz”; mas na verdade seguia religiosamente gestos e trejeitos da mocinha, dissimulado pelo vetusto matutino.

Era uma jovem de rosto aveludado, redondo, coradinha, olhos inquietos e cabeleira farta, levemente calamistrada que lhe tombava pelos largos ombros, dando-lhe o aspecto de moçoila minhota, tostada pelos primeiros raios de sol de Verão.

De súbito, pareceu-me - seria imaginação minha ?! - que me dizia, por sinais: - Se queres podes falar-me.

Encolhido, como era, pensei escrever-lhe; todavia receando ser rejeitado, refreei o desejo. Temi, igualmente, a reacção da mãe: senhora muito jovem, que lia a “Crónica Feminina” e trajava elegantemente, em regra, saia e casaco de cor garrida. Figurei que fosse artista, talvez de teatro; assim pensava porque pisava o chão muito aprumada e ao falar com a filha tinha gestos estudados, muito teatrais.

Nesse entanto consegui, após árduas tentativas, que obrigaram-me a incursões nocturnas, para passar despercebido, a morada da jovem, pela placa de identificação, que fora colocada de modo recatado na viatura.

Em tarde de céu de chumbo, tomei a direcção de Águas Santas e a pé galguei penosos quilómetros. Com facilidade encontrei a moradia. Era bonita casa de lavoura com larga adega e jardim, nada cuidado, que se estendia até leira, onde havia frutíferas e extensa plantação de milho.

Junto a hortaliceira, que vendia couve-galega e feijão verde, inqueri a quem pertencia. Prontamente esclareceu-me que se tratava de gente de posses e de peso, e o dono da casa industrial de muitas empresas.

Passei semanas a cogitar se devia ou não falar à menina ou se seria preferível escrever-lhe. Após várias hesitações, enviei-lhe missiva singela e nada comprometedora. Esperei apreensivo e não nego que temi algum dissabor, mas a resposta não chegou; ou fora interceptada ou a menina queria divertir-se.

Cumprido o serviço militar, em África, empreguei-me. Enganava-me com frequência. Para que não se soubesse, inutilizava as minutas, guardando-as disfarçadamente nos bolsos do casaco.

Certa ocasião esqueci-me de cobrar quantia elevada. Ao fazer balanço dei pela falha, mas não pelo engano. Suei de aflição e roguei ansiosamente ao Senhor que me libertasse deste mundo. Desejei morrer. O coração descontrolado, galopava desenfreadamente. Graças as Deus a ideia de suicídio, nessa época, havia desvanecido.

Quis o acaso ou Deus, creio que foi Deus, o cliente, sócio de pequena fabriqueta de sapatos de senhora, de Avintes, compareceu no dia imediato a entregar o dinheiro. Ainda há ou havia gente honrada!

O patrão, conhecendo o sucedido transferiu-me para o armazém. Foi a minha salvação! Decorrido meses fui escolhido para fiel.

Era inexperiente, mas nos transes agudos sempre contei com a Mão protectora da paternal Providência.

Se há neste mundo quem tenha de agradecer a Deus, sou eu, tanto as foram as bênçãos recebidas.

Ao retirar-me, já aposentado, após ter sido abraçado por todos, com o coração constrangido de saudade e gratidão, achegou-se a mim, colega, que na mocidade conhecera meus irmãos, exprimindo as frases triviais, usadas para essas despedidas. Ao retirar-se, rematou com risinho travesso que escurentou-me a alma, ferindo-me como lança traiçoeira cravada no peito:

- “Teu pai foi pouco generoso contigo se compararmos com teus irmãos!…”

Alfredo calou-se. Vincaram-se mais as rugas que lhe sulcavam o canto da boca; e, aguardando breve pausa, como que a reter os soluços que lhe brotavam do peito, exclamou amargurado, quase arquejante

- Deus meu!; que mal Te fiz ?!

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Ao folhear meses depois o “ Notícias”, em mesa de café, deparei, na secção de necrologia, com o falecimento do meu antigo condiscípulo.

Pujante tristeza invadiu-me a alma, arrancando-me lágrimas comiserativas.

Que Deus o tenha em bom recato! Sê feliz, camarada, já que o não foste no meio de nós!

Humberto Pinho da Silva
Enviado por Humberto Pinho da Silva em 02/11/2010
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