O outro sapato

—Dê-me aquele sapato, por favor.

—Qual?

—Aquele na vitrine.

—Preto ou marrom?

—O preto.

—Qual o número?

—O quarenta, geralmente, fica bom..

Genivaldo, já conhecendo o modelo, subiu por uma escada giratória e foi ao andar superior, no almoxarifado da loja, buscar o modelo solicitado. Logo voltou com as caixas debaixo do braço. Vendedor experiente que era e para não perder a viagem, trouxe também um 39 e outro 41.

Ao se abaixar para retirar, primeiramente o sapato 40 da caixa, observou uma cena, no mínimo, atípica. O homem tinha uma única perna e consequentemente um único pé; o direito. Por um lado, sentiu aflição e até, por que não dizer, um certo sentimento discriminatório por ver aquele homem naquela situação que jamais desejaria para si mesmo ou para alguém de quem gostasse. Por outro, ficou curioso para saber o que ele faria com o outro sapato já que a loja só vendia pares de sapatos. De repente, após um pequeno devaneio, voltou à realidade e pensou consigo mesmo: “o que tenho a ver com isso, meu negócio é vender sapatos. Pagando... Tudo bem”.

Genivaldo educadamente retirou o sapato antigo do pé do freguês e colocou o novo. Apertou com os dedos a ponta do sapato e sentindo haver muito espaço entre o dedão e o bico do mesmo, questionou:

—Está um pouco grande. Quer testar outro número menor?

—Não. É assim mesmo que eu quero. Aliás, é necessário ser um pouco maior do que meu pé. Respondeu o homem, acompanhado por uma jovem que parecia ser a própria filha, a qual concordou com ele.

O cliente pegou o sapato na mão, apertou e dobrou-o várias vezes e de várias formas para senti-lo melhor e se dirigiu à jovem:

—Pode pagar Clarisse.

O vendedor preencheu uma folha com os dados sobre o modelo e o valor do sapato e deu-a para a jovem que foi até o caixa, enquanto ele levou o sapato até um balcão e colocou-o em uma sacola para ser retirado. Após pagar, Clarisse foi até o balcão e retirou a sacola, dando o ticket para o vendedor. Então, foi até o “pai” , ele se levantou, sozinho, utilizando as muletas como apoio e ambos seguiram caminho, saindo loja afora.

Genivaldo ficou na loja imaginando a situação daquele homem e o que ele faria com o outro sapato, já que ele só tinha um pé, mas havia levado o par para casa.

Chegando em casa, o homem, de sua única perna, retirou o sapato antigo e colocou-o na prateleira. Calçou o novo no pé, fechou novamente a caixa com o sapato do pé esquerdo dentro e colocou a caixa em uma sacola. Encaixou a alça da sacola no ombro direito e saiu de casa, silenciosamente.

Andou quase um quilômetro rapidinho, pois estava acostumado a usar muletas, o que fazia desde a infância. Logo avistou uma casa. Ela era antiga, pintada de bege. Estava há uns 3 metros do chão e teve de subir por uma escada para adentrá-la. Na sala havia algumas pessoas esperando. Todas com aparência sofrida. Ele entrou, solicitou ser atendido e ficou esperando a vez, sentado em um banco de madeira como todos os outros. Depois de algum tempo, eis que foi avisado ser sua vez. Levantou, foi até o outro aposento, onde havia outro homem, um benzedor muito procurado para a cura de quebrantos, bucho-virado, dores e todo tipo de doenças. Um senhor de uns cinqüenta anos, cabelos crespos curtos já um tanto esbranquiçados, mas aparentando muita experiência e sabedoria. Ao entrar, o homem cumprimentou-o e o abençoou fazendo alguns gestos simbólicos com as mãos.

—Joana, traga uma cadeira aqui para o Valdomiro.

Logo a mulher trouxe a cadeira. Valdomiro se sentou, retirou o sapato (pé esquerdo) da sacola e deu-o para o benzedor que retirou o antigo do pé e calçou-o. Moveu o pé de várias formas para sentir se estava bom e sorrindo direcionou-se carinhosamente ao amigo.

—Deus lhe pague, Valdomiro... Deus lhe pague.