Fantasmas dos 31

Do alto dos trinta anos bem vividos, naquela noite quente de Novembro Miguel resignou-se a passar um tempo só, em sua própria companhia. Tomou um livro, e recostando-se em sua cama afundou sobre dois grandes travesseiros, afastando os cobertores. Trocou olhares com a obra literária, não se sentiu motivado a por sua leitura em dia, esta que já estava atrasada há algumas semanas.

Desejava estar só, porém sentia-se cercado por fantasmas. Cada personagem daquele livro o assombrava, tagarelando em seus ouvidos enquanto contavam suas histórias. Sentia que algo o sufocava a cada minuto, podia ser o calor, ou muito provavelmente aquela imensa quantidade de pessoas que se concentravam no seu quarto, todas elas sustentadas por aquele livro de capa clara. Sentiu um aperto no peito, jogou a obra na parede e com certa revolta levantou-se para ligar o som.

Mudava de musica constantemente, não se atinha a nada que durasse mais do que um minuto. As musicas atuais falam de amor, e só de amor! Não existem outros temas? Nada mais a dizer? Ele era uma das únicas pessoas no mundo que não sentiam a necessidade de amar. Abriu as janelas, o calor era realmente sufocante. A brisa quase imperceptível entrou vagarosamente, ao passo que as notas musicais fugiam para a noite estrelada bailando por entre os prédios, e logicamente, incomodando os vizinhos, que odiavam qualquer tipo de ruído que não fosse o seu próprio.

Aos poucos os fantasmas voltaram, desta vez não os dos livros. Desta vez era ele quem estava por todas as partes do quarto “se assombrando”. Era tarde e todas as pessoas do mundo estavam ocupadas, umas dormiam, outras cuidavam de seus filhos, outras ainda se ocupavam em jogar Final Fantasy compulsivamente. Ele estava deitado em sua cama, não era bom com jogos, não tinha filhos, não gostava da musica que todos ouviam.

Era fato que fazia muitas coisas com certa facilidade. Tinha uma boa retórica o que o ajudou muito em sua carreira de advogado; era inteligente; sabia como convencer as pessoas; tocava violão; mantinha um blog com um numero razoável de visitantes diários, no entanto nunca fez nada no qual se considerasse suficientemente bom. Por vezes gostava de cantar boas canções, mas sua voz era rouca; outrora escrevia alguns contos os quais tinha vergonha de mostrar às outras pessoas, porque não eram considerados por ele dignos de serem lidos e esporadicamente cortejava algumas mulheres, pelas quais nunca conseguiu se apaixonar.

Levantou-se da cama e deu algumas voltas pelo quarto, aonde mantinha um computador sempre ligado para facilitar as atualizações do seu blog. Sem sucesso em sua vaga busca por algo a fazer, a fim de fugir de seus próprios pensamentos, retornou à sua cama. Permaneceu em estado de torpor por mais alguns minutos sentado, até que o relógio despertador tocou ferozmente anunciando a meia noite. Andou até o espelho, passou a mão na barba por fazer, desejou-se um feliz aniversário, e no alto dos seus trinta (e um anos, bem vividos ou não) resolveu ir dormir.

Sah
Enviado por Sah em 27/10/2010
Código do texto: T2580641
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