Você viu Kathyllene?
Fortaleza não foi sempre a mesma. Houve uma época que ela era uma princesinha no Nordeste. Era uma moça que estava crescendo os peitos. Por todo lugar, fosse piçarra ou areia do mar havia gente batendo o martelo. A cidade crescia e atrás dos canteiros de obras escondia fragmentos de seu passado, suas lendas, suas estórias, lembranças de seus antigos moradores. Dizem que os ratos são os maiores amigos dos homens, eles sabem de tudo, mas nunca revelam seus segredos. Onde hoje é um lugar de elite, de gente que fala inglês, há muito tempo atrás no início do século vinte, havia um bairro que ninguém gostava de morar. O povo que se atrevia, tinha sempre uma estória triste para contar. Era o “Curral das Éguas”. Seus moradores eram constituídos de pessoas honestas, contudo, simples, sem estudo e boas maneiras, e de mulheres que vinham do interior fazer a vida na capital. O Curral das Éguas era um conjunto de becos e vielas, cheios de casas e de gente. Algumas casas eram de alvenaria e outras de todo tipo, madeira, barro, papelão, o que fosse possível improvisar. As ondas da antiga praia de Iracema quebravam no fundo das casas. Quando a maré enchia, o povo ficava com medo do castigo do mar. O Curral, forma carinhosa que as pessoas usavam ao se referirem ao seu bairro, tinha dois turnos. O dos que usavam o dia para viverem, e a noite quando prostitutas e cafetões saíam de suas tocas em busca de suas presas. Kathyllene era uma delas. Uma moça nascida no Ipú. Menina direita, bem criada, filha de uma família muito católica e conservadora dos bons costumes. Kathy, como era chamada carinhosamente, se envolveu com um caixeiro viajante e fugiu com ele. O moço a deixou dormindo num quarto de hotel em Fortaleza e um bilhete sobre a cama: “A vida é doce”. A família não a quis mais de volta e ela foi morar no Curral das Éguas.
- Tu viu Kathylenne? Viu que hora ela voltou? Perguntou dona Maria Zezé. Essa senhora se preocupava muito com as moças, era uma causa abraçada de coração.
- Não, não vi não. Mas, acho que deve estar dormindo, o coronel não veio ontem. Aquele safado!
- Veio, não, mulher, por quê? Perguntou de volta dona Maria.
- Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Concluiu a conversa dona Joana crente. Joana era uma protestante que foi morar no Curral depois que seu marido faleceu. Naquela época as indústrias que processavam a cera de carnaúba estavam em declínio, por esta razão, demitiram muita gente; os americanos haviam inventado a cera sintética. Depois disso seu Gonçalo ficou vivendo das economias até o infarto ceifar sua vida para sempre. Joana tinha um filho, moço velho, nunca namorou, nunca saiu de casa e nem trabalhou. O povo do curral comentava que o coitado tinha um encosto. Alexssandro Dumas Ferreira de Cavalcante, era seu nome. Um rapaz bonito, inteligente, mas de comportamento muito estranho. Quando era dia de culto, ele dava lugar aos seus segredos. O mais interessante era olhar Kathyllene pelo buraco do muro do quintal. O barraco da moça era uma só parede com o muro do quintal de Alex. Ele retirava um tampão feito por ele mesmo e se deleitava com tudo que via. Conhecia todos os fregueses da moça. Mas, o melhor momento era quando esta estava sozinha banhando-se. Não havia água encanada, as pessoas pegavam água no chafariz e a levavam para casa. Era o famoso banho de cuia. Kathyllene passava horas brincando com a água que escorria pelo seu corpo jovem e torneado como um violino encantado. Um dia a jovem recebeu um gringo que havia chegado da Europa. Ela passou duas horas com ele. Foi trabalho especial. Alex viu tudo e parou de olhá-la quando sua mãe chegou da igreja. Depois ele a aguardou deitar-se e retornou para o cantinho do muro. Muitas foram as noites em que o rapaz sentiu prazeres indizíveis vendo sua amada nos braços de homens de todos os tipos. Ela era sua deusa. Os becos do Curral são estreitos, cedo de manhã, as pessoas estão escovando os dentes, outros lavando roupas, e outros tantos despejando os pinicos no córrego. Toda a sujeira do Curral vai para o mar. Aquela noite Alexssandro não dormira. Kathyllene tomara banho, por sinal, daqueles bem caprichados. Arrumou-se toda, usou seu melhor vestido. Um vestido comprido, peça única, todo vermelho. Maquiou-se, e bateu a porta atrás de si. Antes comentara com Fátima, sua confidente que ia sair com alguém da sociedade, mas, não disse o nome. Kathyllene nunca soube do amor de Alex. Nem se quer o conhecera direito. Dona Joana não deixava os dois se verem. Alex passou toda a madrugada esperando o retorno da moça de Ipú. Aquela noite ela não voltara para casa. Alex não sabia o que fazer, pois sempre ela trouxe seus clientes para seu barraco. Após uma espera angustiante, segundo ele mesmo comentara com sua voz interior, resolveu sair em busca da moça. Ele percorreu todos os bares e botecos, até algumas casas granfinas e nada da moça. Quase o dia amanhecendo, o rapaz cansado de procurar Kathyllene sentou-se um pouco no paredão da ponte metálica e fez uma prece a Deus: “Onde está Kathyllene?” O barulho do mar chamou o rapaz para a extremidade máxima da estrutura metálica que se erguia orgulhosamente sobre o mar de Iracema. Poucas foram as vezes que ele estivera ali. O vento era muito forte e a brisa salgada batendo em sua face o fez pensar nos momentos a sós com a moça Kathyllene. Ele iniciou um diálogo com ela em seu íntimo e a proporção que a conversa ganhava forma ele se masturbava lembrando-se de sua fantasias. Tomado pelo momento não percebeu uma brasa de cigarro acessa próximo a ele perto das pedras onde as ondas arrebentam. Cedo de manhã, sem sua mãe saber do ocorrido, ele a pergunta:
- Tu viu Kathyllene?
- Não. Que pergunta foi essa? O que tu tem a ver com essa puta, Alex, me diga!
- Nada, eu só queria saber se tu viu Kathyllene, é só! Replicou o rapaz com timidez.
- Tu te afaste desse povo do demônio, Alex, você não sabe o que ela pode fazer com tu! Disse sua mãe com muita convicção.
Uma vez Alex testemunhara pelo sagrado buraquinho da parede, uma conversa entre a menina de Ipú e uma amiga sua de infância. Elas passaram o dia juntas e falaram de como tinha sido bom os tempos de meninice. Os banhos de açude, as festas de São João. As brincadeiras de cabra-cega, etc., e lógico, as primeiras paqueras e paixões. Aquele foi um dia muito especial para ela. Alex tinha tudo anotado na sua cabeça. Ele sabia do Coronel Augusto, um político importante com mão dentro do Governo. Este se servia da moça todos os sábados às oito. Passavam algumas horas juntos depois o velho rabugento saía deslizando de alegria pelos becos escuros do Curral. O Coronel era um homem violento, muito arrogante e cheio de capangas. No seu dia de estar com a moça havia festa no Curral e a capangada toda dava a “cobertura da área”. Os donos de boteco ficavam alegres porque todo mundo bebia e comia até as tantas.
O domingo passou rápido. O meio dia chegara ainda mais rápido. Ninguém perguntou pela moça, exceto, dona Joana e dona Maria Zezé como era de costume, elas brigavam por causa do cuidado de Dona Maria pela jovem de Ipú. À tardinha, Fátima bate à porta da moça: “Kathyyyy!” Nenhuma resposta veio de dentro do quarto. “Estranho” pensou a moça e foi-se com o vento. O buraco do muro estava agora aberto o tempo todo. Alex queria saber de sua amada. A noite chega. As meninas da rua estavam prontas para mais uma noite de trabalho. Elas eram como deusas caminhando pelos becos e quarteirões, bares e botecos, cada uma atraindo para si um macho afortunado, ou quem sabe, sedento de prazer e cheio de dinheiro para gastar. Elas nem notaram a falta de Kathyllene. O domingo virou madrugada de segunda-feira. A segunda virou terça.
- Kethyllene sumiu. Disse dona Maria Zezé.
- E foi mulher. Por que tu dizes isso?
- A porta dela está fechada, isso não é normal.
- Vá ver que ela achou um homem rico e se mandou no oco do mundo. Ironizou Dona Joana.
Enquanto a duas conversavam Fátima aparece muito tensa e chuta a porta de Kathyllene, entra no quarto, senta-se na cama e chora angustiada abraçada aos lençóis dela. O povo do beco corre para ver o ocorrido e começa o falatório procurando saber o que houve. “O que houve?”
- Acharam um corpo na ponte metálica. E parece ser de uma prostituta. Disse Fátima.
- Se acalme mulher talvez ela tenha ido a Ipú. Tenha fé em Deus. “Aquele que confia no Senhor, nunca será envergonhado”. Dona Joana terminou sua fala recitando as Escrituras.
- Oh, meu Deus, pressinto coisa ruim, eu sabia, minha Nossa Senhora, que o rabugento ia fazer mal a menina. Disse dona Maria Zezé.
- Que nada mulher, o coroné é gente fina. Ele num ia fazer nada não. E tu já tem prova que o corpo e dela mesmo, tu não viu! Disse outra moradora do beco.
Naquela época o radio era a única mídia eletrônica. E para alguma coisa sair no radio tinha que ser de muita importância.
- Vamos para o boteco de Seu Manuel! Quem sabe o radio informe.
- Tá doida, tu acha que vai sair notícia de puta no radio? Tem fé em Deus mulher! Disse Dona Joana, mais uma vez se metendo na conversa.
Apesar do desânimo de Dona Joana, o povo do beco foi ao boteco de Seu Manuel. O radio não dava nada. Era meio dia de terça feira. Um policial que sempre tomava uma pinga ali viu o sofrimento do povo e disse:
- A puta que morreu é daqui mesmo. Não sabemos o nome porque ela estava sem documento. O pescoço foi cortado quase decepando a cabeça. Ela trajava um vestido vermelho. A polícia diz que existe uma testemunha do crime. Um senhor de idade que viu um rapaz fazendo gestos obscenos no lugar. Era madrugada de domingo. A polícia está investigando este tarado. E tudo indica que ele mora no Curral. O policial estava contando a estória quando outros soldados armados entraram chutando portas e empurrando pessoas. Entraram em todas as casas e descobriram o buraco do muro da casa de dona Joana.
- Esta casa é sua?
- Sim, é.
- Como você explica este buraco para o quarto da vítima? Mora mais alguém com você?
- Sim, o meu filho, Alexssandro.
- Onde ele está?
Alex estava debaixo da cama e tremia de pavor quando viu toda aquela gente em sua casa. A polícia levou Alexssandro. Compararam os depoimentos do velho com os dos donos de bares e botecos da região e todos disseram que viram o rapaz naquela noite perguntando por uma moça. “Você viu Kathyllene?” Alexssandro foi julgado e condenado. O levaram para a antiga prisão, aquela, que hoje é a Casa da Cultura. Quatro longos meses passaram. O Coronel desapareceu do Curral das Éguas e Alexssandro foi encontrado morto em sua cela. Disse o carcereiro que foi o negão Banzé; comentam os presos que ele era meio avantajado e a lei da prisão era punir o agressor de uma feme com uma naquele lugar. Alexssandro não resistiu aos ferimentos e morreu.
A época da ressaca chegou, as ondas da praia de Iracema ficam mais violentas, tão violentas quanto os homens. No fundo do mar, próximo a um coral de arrecifes, entre algas e moluscos, uma linda sereia dá o seu primeiro grito. O canto das sereias sempre me fez chorar. Uma linda sereia apanhou uma concha marinha e a pôs em seu ouvido. Sim, eu a vi, a vi, como vejo o sol agora. Olhou para mim e desapareceu, e na imensidão do mar sumiu com sua liberdade, e foi para onde meus olhos velhos e cansados não podem ver. Você viu Kathyllene? Sim, o véio viu... Acucurucaia!