fábrica de linha

FÁBRICA DE LINHA

Era pouco antes de meio-dia, num aspecto sombrio de finais de maio, anunciava-se chuva, - talvez caísse mais tarde, pensava o pequeno Demétrio em seu caminho da escola para casa, apertaria os passos. Não confiaria na chuva. Talvez gastasse dez minutos. Se encontrasse alguns colegas na porta do Osvaldo Cruz, gastaria o dobro.

O letreiro na frente da casa comercial dos gringos estava escrito em vermelho com sombras em azul cobalto. – TUFIC & CHAFIC – RENDAS, FITAS, MEIAS E MIUDEZAS-. As prateleiras estavam abarrotadas de mercadorias. O velho Tufic chegara naquela semana de Ilhéus, havia trazido muitas novidades. Sabia pôr ouvir dizer, pois os boatos circulavam boca a boca, principalmente nas casas das costureiras. Demétrio era filho de uma. Dona Izaltina que lá estivera na Segunda logo cedo viu muitas rendas portuguesas, agajota, tafetá, xale de costa, cambrais e botões de metal, última moda. - As Japonas minha filha, cada uma mais bonita que a outra – emendou prontamente Mãe Alta.

Demetrio encantou-se com um galopim azul marinho. Talvez ganhasse um no São João. Sempre aparecia um cacauzinho da roça do Oricó, já dera um corte. Ouvira seu pai falar com “seu” Pereira que o temporão prometia muito.

- Olha compadre, as chuvas chegaram à época certa. Já viu como tá um carrego danado nos pés de jaca? A jaqueira do quintal de do Elias Castro tá lascando as galhas, falou Pereira.

- É compadre Pereira, Roberto Lobato do Instituto ainda ontem detarde me falou que o cacau este ano vai ter preço. Pagando uns bicos ainda sobra pra comprar umas roupas da meninada lá de casa.

Algumas senhoras vinham subindo o beco das canoas, algumas vinha de Poirí, outras vinham do catolé, se dirigiam a casa do gringo.

Na vitrine da frente, os tubos de linha em matizes diferentes chamavam atenção, linha Zebra, Urso em seus carrinhos de madeira. Às vezes sua mãe lhe pedia prá vim comprar. Gostava, pois só assim poderia olhar de perto os carrinhos de linha Urso. Linha boa para empinar arraia, como não tinha dinheiro prá comprar linha Urso, eles e a meninada da rua de cima, empinava arraia com linha de rolinho, comprado na descida da praça da feira em frente a padaria de Pamphilo Santana., um desastre; sempre a linha não agüentava, rompia-se.

Demétrio gostava de ouvir os gringos atender os fregueses.

- A brima quer exberimentar a galopim, é breço de ocasião. O turco misturava o masculino com o feminino e pronunciava a letra b no lugar de p.

- O gringo Tufic, na verdade não era Turco como imaginava o povo da cidade. Sim Sírio-Libanês. Em sua maioria dos imigrantes Libaneses eram cristãos. Católicos Maronitas ou ortodoxos, povos minoritários num mar de muçulmanos, perseguidos pôr motivos religiosos. Esses imigrantes traziam na bagagem a ética do trabalho, feita de esforço, capacidade de enfrentar grandes sacrifícios. Iniciavam mascateando em mala de couro tocada ao lombo de burro. Corriam a procura de novos mercados, operava uma revolução no comércio popular, com novidades como venda a crédito, redução das margens de lucro compensada pela quantidade, alta rotatividade de estoque e promoção de liquidação. A imigração fora espontânea e individual. Os Sírios-Libaneses se estabeleceram nas cidades e ganhavam a vida como comerciantes autônomos a ir para as lavouras do interior, como fizera outros estrangeiros – o objetivo era ganhar dinheiro e voltar. “O patrício chegava pegava uma mercadoria em consignação, colocava na maleta e saía vendendo de porta em porta, ou sobre uma lona estendida nas praças e feiras livres. Aos pouco abria uma lojinha, um atacado e pôr aí ia ficando”. Assim acontecera com o Gringo Tufic. O irmão que viera com ele, morreu de impaludismo nas matas de Camamú. Botara o nome da casa comercial - TUFIC & CHAFIC- em homenagem ao irmão falecido.

- Demétrio, hoje à tarde você vai com a gente pro sequeiro pegar curuca? Indagava Raimundo.

- Iiih! Rai o tempo tá nublado, curuca gosta de sol. Faz um frio danado, Lá ele, “chama queei.

Virando a esquina de Mattos Souza & Cia, Lula seguia em direção de casa, pensando no gringo Tufic, venderia muita lã neste inverno, daria um jeito de comprar um carrinho de linha Urso, botaria sua arraia perto das nuvens, invadiria o reino de São Pedro, O Padre Dema disse nas aulas da primeira comunhão que São Pedro é o porteiro do céu. Deve de ser uma porta arretada de grande. Com esses sonhos, Demétrio procurava realizar com empenho louco a ilusão de vida, sonhar para ele era uma felicidade – è tão doce sonhar... Pensava. A vida nesta terra vale apenas pelos sonhos, pois se sonhássemos todas as noites a mesma coisa acabaria atingindo o objetivo. A vida é insignificante sem os sonhos, o sonho é uma mentira colorida, é a estrela guia dos caminhos da ilusão, força serena de toda uma vida.

A noite comeu aipim com carne de sol, bebera o café com leite e fora comer o pão, sentado no meio-fio da calçada. No outro lado da rua a padaria de “seu” Benjamim atendia os últimos fregueses. Burí trazia uma fornada de pão de milho.

Demétrio pensava no carrinho de linha Urso, a arraia não cairia mais nos quintais das casas da rua das pedras. Faria uma arraia bem colorida, das cores da seleção brasileira, a cauda de madeixa temperada com vidro moído. Não ficaria nenhuma arraia pôr perto, dominaria os céus. Pensamentos viajando, risos de satisfação no rosto. Derrubaria todas, até as dos filhos de Antonio barros. Ah! Zé de Noca de Juvenal me pagaria. Ah! Se pagaria.

No outro dia bem cedinho fora até a tenda de Dete Apolônio, junto da padaria, na descida da Rua do Capa Gato. Começou a catar pedaços de ferro velho, cabo de repetição, parafusos, porcas, arames, arruelas, até ferraduras e cravos usados. Pondo no carrinho de madeira, guiado pôr dois fios de madeixa, levou tudo para o quintal de sua casa.

- Pra que esse menino tá juntando tanto ferro velho? – Matutava sua mãe. - será possível meu Deus? Esse menino tá aluado endoidou de vez. – Ô Demétrio, pra que tu quer tanto ferro meu filho? –Perguntava a mãe.

- A senhora não sabe...? Tô pensando em construir uma máquina de fazer linha.

- Linha? Que linha meu filho?

- Linha Urso, linha Zebra, linha de costurar. Vou fazer linha e vender na feira. Vou ganhar meio mundo de dinheiro. Vou vender até pro Turco Tufic. Já pensou minhas linhas na vitrine. “Linhas Demétrio”.

- Oh! Meu Deus, tá de miolo mole mesmo.

- Miolo mole qual nada, tô certo, “seu” Dete vai me arrumar o restante das peças e Dico carpina vai fazer os carrinhos de madeira pra enrolar a linha. Vou ganhar meio mundo de dinheiro. Vai vê só. Se num faço. Ora essa. Pensava Lula: li na enciclopédia “Curiosidades” que Thomas Edison aos dez anos inventava coisas que chamava atenção de técnicos. Louis Pasteur, com idade de oito anos incompletos descobriu uma fórmula prática de manipular ácidos. Denis Papin fez barquinhos aos três anos: um desses objetos o inspirou na construção do primeiro barco a vapor. “Seu” Rebouças me disse que Alessandro Volta criou a pilha de acumular energia aos dezesseis anos de idade e “seu” Pascasio tava no balcão do” Pão de leite” com Artuzinho que Samuel Morse, inventou do Telégrafo e do alfabeto Morse que o mesmo era pintor de telas antes de se tornar físico e se dedicar aos estudos da eletricidade. Pior foi que seiscentos anos antes de Cristo os Egípcios fabricavam tecidos e rendas com fibras de linheiro. Na Grécia antiga já se trabalhava o algodão e os botões já existiam

Após essa conversa; a mãe de Demétrio saiu balançando a cabeça em sinal de reprovação.

Enquanto durou a idéia da máquina de linha, Demétrio abandonou as pescaria no sequeiro, bola no meio da praça, nem vê. Todo o tempo era manejando pedaços de ferro. Parava matutava: mas como será uma máquina de fazer linha. Nenhuma pessoa sabia povo burro. Mangabinha fez um relógio. Tá pendurado na parede da oficina funcionava direitinho. Pôr que ele não faria a máquina de linha?

E o tempo passava, dias, meses, nada. As mãos sujas de ferrugem e óleo alimentavam o seu sonho. O tempo é nosso melhor amigo, melhor do que ninguém para ensinar a sabedoria, o tempo é o pai de todas as verdades e só ele pode revelar-nos o espírito da persistência. O tempo é necessário para tudo: é suficiente para amadurecer o conhecimento. Cada dia, cada procura representa uma nova cena, como num teatro. O tempo passa lentamente, devagar... O hoje e o amanhã são pedras que passarão, a marcação do futuro depende do saber e a vida humana é uma eterna procura de conhecimento, Demétrio sabia que enquanto vivesse a tentação de novos caminhos é incitante. Cada personalidade procura o sucesso de um empreendimento com maior a menor firmeza numa desenfreada tentação de conhecer a glória. Estava Trabalhando. Vez e outra acertava o martelo no dedão, sacudia as mãos e assoprava o dedo. P... De novo?

Passou a folhear tudo que era livro, a revista O CRUZEIRO só falava da nova capital – Brasília – era a única que chegava aos quilos na venda do pai, só servia pra enrolar sabão, nunca falava de uma fábrica de linha. Tamanho desperdício, uma revista inteira pra falar de uma cidade.

Tencionava perguntar ao Turco Tufic se ele comprava linha na fábrica. Não, era melhor perguntar se na terra dele tinha fábrica de linha. Provavelmente ele não saberia, pois se assim soubesse faria uma prá ele, invés de comparar nas mãos dos outros.

- Gol de Pelééé. Brasil rumo ao trí mundial, narrava o locutor da Vusa, retransmitindo os jogos da seleção da rádio Globo para o serviço de alto falante da voz da cidade. Os homens faziam grupo junto aos postes de iluminação onde existia uma boca de alto falante. Vez ou outra o som fugia, alguns ficavam na ponta dos pés, como se tentasse ir buscar o som.

O povo vibrava quando o locutor narrava as defesas do goleiro Manga.

Consternação e tristeza. Alguns choravam, o locutor tentava explicar: Pelé sofrera dura marcação e era retirado de campo na maca. Estava fora do jogo. Logo em seguida o médico da seleção explicava que Pelé estava fora da copa. Alguns fanáticos xingaram os portugueses, Nadinho Magalhães, achava que o Brasil devia declarar guerra a Portugal. Babá queria expulsar todos portugueses do Brasil.

Em tamanha convulsão socio-patriótica, Demétrio começara a esquecer da máquina de fabricar linha. Uma nova imaginação crescia dentro de si. O ódio aos patrícios portugueses. Fecharemos para sempre as portas à conciliação com os lusos, a harmonia daqui em diante não se ouvirá, vingaremos também os séculos de ignomínia e submissão. Nossa prolongada bondade aos roubos, violência, espoliação praticada ao longo de nossa história impedem-nos de sermos justos. Perdoe-nos Deus porque assemelhamos a eles, sem pensar substituiremos o amor, a fraternidade pela justiça, porque a força não é remédio, sabíamos que os Portugueses tinham medo e a violência não deixa de ter parentesco com o medo. Os homens para a inimizade, o mundo não pertence a violência. Que a bondade é a mais dominadora de todas as forças.

LUIZ MAGNO
Enviado por LUIZ MAGNO em 22/10/2010
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