CIRANDA BEIRA RIA

CIRANDA BEIRA RIO

O rio estava ali, preso às terras. Sinuoso e triste era o seu caminho debruçado sobre rochas, enveredando para leste, ao encontro com o mar.

Matas virgens eram fronteiras; de longe se deixava perceber os entrelaçados de cipós, bromélias, epífitas e fetos. Grandes árvores cobriam as roças de cacau.

O hgr-hgr-hu-hu-gwû-Gwû do bando de Japus em suas colônias de ninhos pendurados causava arrepio na alma. As Arapongas com seus pontiagudos e estridentes cantos de ferreiro, causavam sobressalto à Perdiz.

O sol baixando por trás das matas anunciava o fim de mais uma tarde. O último raio refletia na água do rio. Uma solidão que estendiam a passos largos. A terra coberta pelo véu crepuscular, dominavam os cacaueiros debaixo da mata, que atapetava o solo com folhas secas. Acabrunhadora era o perder das roças, além das serras. Às terras do vale do Rio de Contas, era coberta por um manto verde de paixão e riqueza, pois os homens viam em cada semente que plantava um sonho renascer.

A noite viria com um tênue sombreamento, baixando sobre a terra. Era hora de recolher mais um dia de sol. Era momento que sempre encontrava um ente taciturno.

Ao longe, numa curva do rio, vinha descendo uma canoa roçava a água sutilmente, como se navegasse em espumas. Evitando pedras em alguns trechos de sequeiro. Zeca Cipriano, de calças arregaçadas até o joelho, tinha o dorso nu, vinha remando; era um conhecido pescador. Nascido lá pras banda do Oricó era conhecedor daquelas águas e matas; vinha de uma pescaria lá do canal do Banco. Águas ricas em traíras e piaus. Uns bagres chiador também não escapavam as suas malhas.

O sol morria seus últimos raios nas mansas águas, deixando o leito do rio à sombra, que pouco a pouco se alargava como tentasse abarcar a terra.

Encalhando a canoa na boca de fonte, pega a tarrafa pela espia e caminha para o casebre de taipa situado próximo a uma jaqueira. Morava sozinho. Era local afastado das casas da vila; lá apenas ia para vender os frutos de sua labuta diária ou comprar o necessário na venda de Valdivino Mascate.

Zeca Cipriano, nunca fora sujeito de grandes amizades. Alto de talhe delgado, era franzino, mas persistente. O rosto era tostado pelo sol, a comprida face já apresentava os primeiros sinais de fendilhamentos das rugas.

Vivia apenas para o Rio, amava-o como a si próprio, era quem o entendia, com quem desabafava suas angústias e solidão. Causava estranheza perante outros pescadores, quando em noite de lua, ficava a conversar com a Mãe d’ água.

Família, nunca tivera; vivera desde pequeno, com Tite pescador. O pai sabia apenas que se chamava Jesuino, a mãe Maria Afonsina. Às vezes fazia imaginação de como seriam. Tite, poucas vezes que tocara no assunto, narrava pedaços de aventura, eram agregados do Coronel Lopes na região do Oricó. Foram trabalhar pras bandas de canavieiras, ouviram conversas de que o governo tava distribuindo terras nas margens do rio Pardo. È foram a procura de terras do Governo, diziam que trabalhador lá morria todo dia de impaludismo. Pelo tempo e falta de noticia, alguns já teriam se indo. Como não, a doença comia por dentro famílias inteiras. Também poderiam ter sobrevivido e estaria pescando. Às vezes tentava construir imagens dos seus, não lembrava. Pois fora entregue ainda pequeno a Tite, primo distante, por que o dinheiro que tinham mal dava pras despesas da viagem de trem até Ilhéus e daí pegar o vapor da Bahiana até o destino. Ele ficara como um estorvo. Talvez um dia viesse buscar, talvez quando? Nunca apareceram se aparecesse também não sabia se iria. Sabe-se lá se o impaludismo não tinha comido todos. Após a morte do velho Tite, fora para vila de Itapira, trabalhara muitos anos como canoeiro, transportava em dupla, cacau até o canal do fumo, perto de Água Fria.

Colocando um pouco de água para ferver num fogo de lenha, caminha para as margens do rio. Senta-se sobre uma pedra, cruza as pernas, põem-se a pensar como vivera até hoje, seu isolamento começou obra de trinta anos. Pensar e olhar para as águas, já era um velho hábito seu. Imaginava como tudo começou:

Ele ainda trabalhava no porto. Ela morava na casa de Dr. Idelfonso Alves, Advogado chegante de Ilhéus. Sobrinho da mulher do Coronel Pedro Setúbal. Chamava-se Zulmira. Era uma mulata ajeitada, tinha um rebolado no andar, que deixava os homens que trabalhavam no porto, babando. Aquela boca de lábios carnudos, cada beijo ardia gostosamente como uma moqueca de pitu bem apimentada. O corpo! Ah... Nem é bom lembrar, fala mansa como a água da primavera em noite sem ventos. As pernas? Torneadas, e duras, com as coxas roçando uma as outras, deixando todos esbabacados. Ah! Quantas horas de amor o rio presenciou! Possuíra dentro da canoa, acima do rio... Do alto a lua presenciava tudo. O ardor de seus lábios era estonteante. Os gemidos era um canto de prazer para os ouvidos. ‘’Zeca, meu Zequinha, ah!...’’. Tudo corria bem entre eu e a Zulmira. Pensava Zeca. Tencionava montar casa, quando aconteceu a desgraceira.

No mês de fevereiro, todo o ano, acontecia a festa de Nossa Senhora de Lourdes em Faisqueira. Povoado próximo a Itapira e que geralmente tinha um dia dedicado aos pescadores e canoeiros, classe média dentro da arrumação social das cidades ribeirinhas. Aquele sujeito alto, de cabelos empastados, tropeiro dos Paschoal na Ipiranga, fazenda às margens do Alfavaqueira.

Entre um gole e outro da Atalaia, entretido num dedo de prosa com os companheiros, cismei que o bicho olhava insistentemente para a Zulmira. Em todas as barracas o peste nos seguia. Ensimesmado notava que a desgraçada da mulher, vez em quando correspondia ao cabra.

 Tu nunca viu home não?

 Ta com ciúme, ta, fica não neguinho.

O sangue ferveu-me quando o cabra pegou no braço de Zulmira e tentou passar as mãos em seu queixo. A nega em sua vaidade deu uma rabanada com a cabeça e sorriu cinicamente sobre o ombro. Um frio correu-me a espinha. Um ciúme doentio dobrou-me a face quando notei que a nega também gostava das investidas do cabra. Tomado de raiva, parti para tomar satisfação.

- Tu num ta veno que a muié já tem home?

- Num atinei não que era sua amásia. Voismicê só liga pros copos. Levado pelo efeito da Atalaia, partir pra cima e abotoei. O peste reagiu. Esmurrou-me no rosto e pulou de lado com a mão num punhal. Até hoje, estou arrependido, desgraçar minha vida por uma mulher que eu pensava que prestava. Recuei alguns passos. Também puxei a faca que sempre carregava. Tamanha foi à correria. Avancei decidido a acabar com o cabra. Tentei acerta-lhe a barriga, mas, o bicho pulou ligeiro de lado. Tentei de novo, mas recebi um golpe certeiro no ombro esquerdo. Entusiasmado pelo golpe certeiro, o bicho investiu, tropeçou num banco, qual aproveitei; levado pelo desespero de ver o meu sangue por terra,dei-lhe um golpe certeiro no pescoço. O desgraçado sambou por terra; levantou-se com grande dificuldade. Saiu zanzando e foi cair perto de uma casa de sopapo que ficava num beco próximo a Igreja.

Na babafúia, bati beirada em direção a Itapira, precisava chegar primeiro que a notícia. Num quarto de hora já estava no Cachorro Assado. Sob os olhares curiosos das lavadeiras, passei pela beira do rio. Acerquei-me do barraco no porto das canoas, olhei em volta. Apenas Albertino fazia a travessia, os demais estavam na festa. Entrei, peguei uns trocados que tava guardando na intenção de botar casa prá Zulmira, o facão jacaré e subi rente a “peda de Ciço” em direção ao Santo Antônio.

Sem destino, meti-me naquele encruado. A mata chegava logo ali, depois dos cacauais. Cipós cobriam os raios de sol, o céu azul ficava lá fora. A terra úmida esguichava-se nas pisadas. Atrapalhado pelo entrelaço entre os cipós Imbé e Caboclo.

Levado pelo acaso, não procurava minúcias para cada investida no matagal; fazia o caminho a peito com ajuda do jacaré, pois naquele momento não mais podia parar para pensar, só tentava desviar cada vez mais da estrada principal. O emaranhado da mata era cada vez maior.

Não me detinha a obstáculos que porventura encontrava no caminho, não trilhava em direção alguma, não procurava lugar nenhum. As pernas já sentiam os primeiros sintomas de cansaço. Fraquejava em saltos a pequenos córregos e ribeiros.

Dentro do encruado, depressa a noite chegava com suas garras, com ela vinha também um censo de culpa por uma ofensa mal respondida; - o que tava feita, tava feito. Nunca fora de briga, mas, também não era de levar desaforo para casa.

O cantar dos grilos, eram músicas melancólicas. Por dentro da mata, os gritos das Arapongas chegavam ali como mau agouro. Cada vez mais embrenhava na mata como a procurar um local mais distante. – Seria capaz de encontrar por aquelas bandas um local habitado? Se por ali existisse, não seria mais que uma tapera de caçadores. Luiz de Miguel e Zé de Nézio gostavam de caçar por aquelas bandas, vezes ficavam vários dias caçando; talvez encontrasse um desses. – Isto é: se antes não fosse esfolado pelas unhas de alguma jaguatirica. Bicho treteiro que rondava aquelas bocas de mata.

Veio à noite; com ela a certeza de um novo rumo. O ar morno e seco, bom de dormir. A passarada amoitara a muito. O zunir das cigarras preenchia o silêncio da noite sobre a copa da mata. O céu fazia-se negro. Ali estava sozinho. Numa restinga a beira de um córrego, apenas a noite como companheira. A noite já ia alta quando, encostei-me a um tronco de Gameleira. Tencionava passar um sono. Sentei a cabeça entre os joelhos. Retrocedi no tempo e espaço, uma moleza repentina tomou conta do cansado corpo. O ocaso da noite acompanhada de músicas d’água. . Há essa hora, as canoas no porto de Itapira em seus bailados de ir e vir, rasgava o rio, levando a turma pro Tampa Surrão Ah! O Rio já fazia parte de minha vida, tudo que sabia era singrar sutilmente suas águas; fora aprendiz do velho Mestre Tite Pescador. Horas, tinha ficado nestes pensamentos; quando de longe veio morrer, rugidos estranho. Parei de pensar a vida, ansiava compreender de onde teria partido aquele arrepiante som. Novamente ouvir. O assombro foi total, era o que temia. Olhei para os lados, só restava a Gameleira. Trepei entre cipós, o sangue congelou nas veias. Os cabelos arrepiaram, um suor frio desceu na face, era o medo que já tomava conta do corpo. Fiquei quieto, nada apareceu. Tudo ficara quieto. Até as cigarras parara de zunir, em respeito. O rugir da água do ribeiro sobressaiu à tamanha quietude. Ali mesmo tomei posição, notei que o pé estava queimando da caminhada. Agora ali acuado na mata, cercado de grandes árvores, a sede chegou mais cedo que o esperado... Sua garganta estava seca, não lhe importava tanto os pés doídos. Precisava comer, não tivera tempo de procurar frutas, Não era época de araçá d’água - pensei. Alguma coisa que emitira pavoroso som assombrava-me,. Os grilos triniam uma música insuportável, todos num incessante canto harmônico. A cobertura espessa da mata não deixava ver as estrelas, será que seriam as mesmas da beira do rio? Lembrou-se do fumo do bolso, fez um cigarro, o fumo fazia esquecer a fome., diacho é a sede, o estomago pedia comida, se descesse para beber água, melhor não. Em pensamentos adormeci.

O dia veio. Saltei da árvore ainda com receio do bicho. Bebi água. Bom receber a luz do dia. No alto os raios tentavam penetrar entre os entrelaçados de cipós, epífitas e bromélias. Andei cerca de uns quatrocentos metros, divisei um brocado na mata, aproximei cuidadosamente, notei uma tapera. Não era fazenda e sim uma tapera de caçador. Olhei em volta. Divisei um banhado, bebi novamente água. A tapera estava numa ondulação próximo a uma pequena lagoa que surgia da boca de um córrego. Do outro lado estava a mata. Beirando a tapera, cheguei aos fundos; tinha uma capôra de feijão e alguns temperos. As bananeiras em touceiras eram viçosas. Ao longe, lá para as serras, a mata perdia-se. Dentro da várzea sem tamanho, as tábuas dominavam a saída do córrego. Já não se vinha a muito, sinais de cacaueiros, as árvores altas dominavam o horizonte.

O barro ocre e avermelhado envarado, era a parede da tapera. A cobertura de folhas de Patí escondia os raios de sol. Um acoito de caçador. Pensei.

Acercando-se da frente, empurrei a estreita porta. de madeira fraquejada. Penetrei no único cômodo. Nos fundos o rústico fogão feito com pedras soltas, a tosca mesa feita com restos de sarrafos de perobinha era junto com o jirau de dormir, os únicos móveis. Pendurado na forquilha da cumeeira estava um saco que depois de aberto, encontrei um resto de farinha e sal, suficientes para fazer um cozido de feijão, água, sal e alguns temperos.

A cabana, ponto de caçadores ha muito não aparecia seus donos. Notara que perto dali no final da capora, iniciava a mata, onde descobrira uma vereda entre uma juerana e uma gameleira.

Pensava no ocorrido. Será que o cabra morreu..? Voltaria prá saber notícias... Não acho que não...

Botou pé na estrada. As árvores cobriam o horizonte, o sol aparecia timidamente. Cerca de um quarto de dia, chegara a um roçado de mandioca, que estava nos fundo de um casebre de taipa a beira de um regato. Esgueirando o roçado, viu uma mulher junto à fonte lavando uns trapos, talvez roupas. Tomara informação. Estava perto de Cachoeira do Pau. De posse da orientação, tomou rumo ao povoado. Tencionava chegar pela boca da noite. Assim aconteceu. Próximo a um curral, protegido por algumas folhas de zinco encontrou uma birosca abandonada. Fora uma longa e penosa noite, entre um e outro cigarro junto com goles de cachaça barata, comprada numa bodega próxima, tapeava a fome que veio na madrugada.

Pela manhã, logo cedo, foi até a beira do riacho, lavou o rosto. Sentado numa costaneira estava um homem com a cabeça entre as pernas, pensativo.

 Bom dia irmão. Desconfiado Falou Zeca.

Pausadamente, o desconhecido levantou a cabeça. Olhou prá Zeca. Tinha um olhar maroto. Sujeito de meia idade

- Dia mano. Respondeu o caboclo magro. Preguiçosamente.

Depois de um início de conversa, logo se entenderam, pois ambos carregavam dentro de si, problemas iguais. Mistérios e desilusões. Ficara sabendo também que possibilidade de trabalho, somente em seringais na região de Santa Cruz. chamava-se Nego Doro e trazia algumas informações.

- Tão percurano home! É seu mano, dizem que são Francez. Completou o Negro que arremeteu um principio de gracejo e dúvida. – Os home ta plantando um mundão de Siringa. Sube duns tropeiros lá do Valetim que sempre carrea gado do Ouro prá lá. È pra tirar leite. Ora, ora seu mano, nunca vi tirar leite de pau.

Após confirmar com outros que moravam no povoado sobre as notícias, rumáramos em direção à Santa Cruz. As chuvas não davam trégua.As nuvens enegreciam o céu, os ventos sacudiam as árvores numa violência terrível. Tremíamos e vagarosa era a caminhada. Chegaram ao Travessão, onde outros se juntaram a comitiva Um apoiado na esperança do outro. A sezão dera cabo de um, fora enterrado nas margens do rio Orojó. Os dois dias da viagem restringiram a alimentação num punhado de farinha, um resto de carne seca, aipim e palmito de juçara, cortados nas matas.

Na chegada arrumaram trabalho. Fazer carreiros e abri covas para as mudas nova de seringa. Onde já se viu: plantar árvore prá tirar leite.

Ficara amigo de João Pintado, negro alto, dentes brancos que desapareciam dentro dos grossos beiços, negro simpático e de boa prosa, tocador de viola, recebera esse apelido em decorrência de algumas manchas de queimaduras nos braços. Era de Dois Irmãos. Tinha acabado de perder a mulher, vítima de maleita. Moravam juntos com outros na avenida de solteiros. Construção de madeira, coberta com folhas de zinco, a cozinha era um puxado nos fundos. O feijão cozido no fogão a lenha era repartido igualmente. E o banheiro era o mato. João dizia:

- O despejo é no mundão de meu Deus... Agregado caga e aduba os seringais dos Francez– Arvore que dá leite.

Durante as noites, João contava estórias, cantava modas de cangaceiros, que aprendera nas feiras dos sertões de Contendas do Sincorá. Os homens ficavam atentos, pois João misturava música e causos. Cantava cantigas tristes, alguns sambas, às vezes destoava com as cordas do violão de um Sarará novato de nome Gertrudes, marceneiro magro vindo de Santarém, tava construindo casas para os Franceses. Diziam que era bom construtor de bancos e foi iniciado nos estaleiros de Valença. Homens com mãos calosas do dia a dia no cabo da enxada, levavam esperança de melhores dias ao coração dos presentes, estórias de amor e ódio. Mãos que durante o dia queimavam nas ferramentas, à noite davam alegria e espalhavam suas tristezas nas noites.

“Te esconjuro, nego Banjo!

Tição do sertão,

Deixou o coroné sem orelha...

Sem nariz...

Arrancou o saco...

Tirou o coração,

Prá nunca mais bulir...

Em famia de peão.”

Deitado, acordado, Zeca pensava na vida. – Ah, que saudade do rio de Contas. Pescaria de espera usa de grozeiras. Nunca mais comera uma moqueca de calambau. Quando o silencio baixava totalmente sobre a noite, quando não mais se ouvia o som das cantorias, Zeca estirava a alma. A lamparina apagada lembrava-me do ocorrido. Tudo por causa de ciúme, amor e dor, o ciúme por amor próprio ferido que transforma em ira, despertando reação viril, essa reação sobrepõe o orgulho, cegando, ferindo e matando. O ciúme junto com o cinismo provoca reação violenta ao mais digno dos homens, quando ofendido, não há ninguém louco ou sereno, sábio ou não, mau ou bom que não censure ou reaja ao ciúme, porque desgraça espera por desgraça, crescia dentro de Zeca um horrível suplicio. O pavor e a angustia tomava conta de seu sofrimento, em proporções desconhecidas, arrastavam suas esperanças, torturavam e corroíam suas forças.

- Dizem que o leite da siringa era pra fazer pneu pra artomove. Puxava conversa Nego Doro.

- É seu mano tudo pra ir pra “oropa.”

Valdemir, beradeiro trabalhador nos seringais, morador de Santa Cruz, falava dos mariscos do local, pego em manzuás e camboas. Talvez fosse um dia lá em baixo. . Falava-se das festas de São Benedito, padroeiro local. Iria vir até orquestra de Valença. Local engraçado aquele: Arvore dá leite e o santo padroeiro da terra é Preto. – Ora! Santo Preto.

Sábado pela tarde, em romaria, desceu o povo que trabalhavam nos seringais da Mariana. Eu, Nego Doro, João Pintado, Gertrudes, Valdemir e outros mais. A turma ia animada, Gertrudes comentava.

- Ei, turma, vou estreiar uma modinha nova, tomara que tenha muita mulher beradeira do meu tipo. – É seu mano, pobre também se alivia Tô três mez sequinho da silva. Em fazendas de cacau tem mula de tropa pra aliviar a moçada, aqui a coisa é braba.

– Lá é Maraú. Apontava Valdemir no alto da ladeira da Biribeira, já chegando a Santa Cruz..

Na chegada do arruado, a igreja imperava num outeiro próximo. Alguns barcos, chaboques e canoas ancoravam no cais do pequeno porto, junto à ponte. Pequeno povoado. Armazéns para embarque do cacau contavam os dedos das Mãos. Em frente a Igreja armaram barracas pra vender quitutes, cachaça barata, quentão e leite de onça. Valdemir comentou:

- Tanto trabalho, tudo vai pro rabo do padre, o saco nunca enche... Diziam que são as despesas... Ora o povo pagava batizado, casamento, as velas... Até o vinho e as hóstias entrava na conta.

A maioria ficou arranchado num depósito, outros num roldão, local para fabrico de azeite de dendê. Depois do banho num local chamado de lava-pés, lá iam procurar um boteco prá benzer a alma. Na porta de uma venda um velho vendia utensílios de madeira branca – gamela, colheres de pau, mão de pilão e molheiros.

De qualquer jeito se defende a vida. Pensava.

Muita gente no povoado para reverenciar o santo da terra. - Ora essa, Santo Negro. Pau que dá leite. Gente do Quitungo, Tremembé, Maraú, Andará, Ilha Grande, João Branco, Barcelos do Sul, Orojó. Alguns mascates ainda arrumavam barracas para venderem roupas, sempre vestidos e calça porta de loja de segunda categoria.

A noite ia longe. A festa num colégio de duas salas rolava animada. Os beradeiros esperam o ano todo para esbaldarem numa noite. As mulheres vestidas em cambraia. O pó de arroz no rosto misturava-se ao suor. Os homens vestidos em seus ternos agajota. Ao longe vez em quando espocavam rojões de três tiros. Os foguetes descreviam no céu coreografia irregular. Antes de retornarem a terra, os meninos disputavam as flechas caídas em quintais.

Alem da rua principal, um pouco afastado existia em Santa Cruz “a Rua do seca gás”não era propriamente uma rua e sim uma casa , tipo sitio onde ficavam algumas mulheres de vida livre, principalmente nesta época de festa. Prá lá foram o Nego Doro e Gertrudes. Tocaram moda de viola, encantaram umas poucas mulheres que gastas pareciam verdadeiros esqueletos humanos. Mais tarde, Gertrudes perguntou a uma morena cabo-verde que parecia apreciar seus dotes artísticos.

- Quanto cobra?

- Cinco mil reais.

- Quantos anos têm?

-Inhor, sei não..., acho que uns vinte.

- Só isso?

Pobres restos de mulheres. A cabo-verde terminou dentando com Gertrudes por Três mil Reis. Parecia que tinha quarenta anos, depois do sexo desandou a chorar, só parou quando tomou um gole de conhaque barato de dois tões.

Assim fiquei bebendo com João. Após levar a mulher em casa, Valdemir se juntou ao grupo.

- Eta festa boa, essa de Santa Cruz. Falou João.

- Igual a essa só a de Faisqueira. Falou Bacora, pescador que bebia com outros amigos num canto do boteco.

-Tão boa que quase termina em morte. Retrucou outro.

-Mas como home? Prontamente argüiu Valdemir.

Rapaz teve uma briga que foi um sangueiro danado. Um vaqueiro dos Pascoal se meteu com a mulher de um canoeiro de Itapira e levou a pior. O desgraçado sangrou igual a boi, mas não morreu não, Dr. Auxêncio tava na festa e salvou o bicho. O outro sumiu no mato que até hoje não se tem notícias.

Ao longe pipocavam os rojões. A orquestra de Valença entoava uma polca-mancada num compasso binário muito alegre que era acompanhado pelos presentes com cantigas.

Zeca Cipriano ouviu aquilo como música. A consciência era aliviada dum peso medonho

Na segunda-feira cedo, já estava na labuta nos seringais da Mariana. Voltaria para Itapira? Talvez um dia. Voltaria para as águas de seu Rio de Contas, lá viveria até que um dia o corpo velho morreria – se morresse por ali, poriam numa rede, levaria seu corpo pro cemitério – senão, amarrado numa esteira.

Trabalhou por três anos nos seringais. Andara trabalhando por muitos anos na estiva de Ilha Grande e Maraú. Ficara certo tempo botando roça de mandioca e cortando dendê na ilha do Andará, entre Santa Cruz e Maraú. Voltou a Itapira. Zulmira, bem, eu soube na venda de Valdevino mascate que estava estabelecida na “rua da lama” em Pirangi, depois de amasiar com um maquinista da estrada de ferro. O ocorrido já esquecido era passado, poucos ainda relatavam o causo.

Ele, ali estava sentado, admirando o velho rio companheiro, refletindo em suas águas uma imagem já bastante desgastada, vivendo do lucro dos tempos. Vivendo? Talvez. Sofria em silencio, sozinho, saboreava lembranças como um vinho nobre. Esse suplício nos conduz a virtuosidade como filho deste mundo.

LUIZ MAGNO
Enviado por LUIZ MAGNO em 22/10/2010
Código do texto: T2571523