O circo chegou
Quando eu era criança, um dia chegou um circo em minha cidade. Na verdade a cidade onde morava a minha avó e que eu ia sempre e ficava algum tempo.
Não tinha carro de som e o palhaço era quem fazia a propaganda do espetáculo que aconteceria nas noites em que o circo ficava na cidade. Logo o meu primo Francivaldo corria e me dizia a novidade. Eu avistava de longe o circo sendo montado, bem no centro da cidade, perto do mercado municipal. Corria para ver os bichos, principalmente o macaco. Naquele circo não havia muito animais e pior, os que tinham estavam todos bem magrinhos, pareciam passar muita fome!
Um homem apareceu e nos disse que se nós fossemos atrás do palhaço gritando então ganharíamos o carimbo para entrar no circo e assistir o espetáculo à noite. Imediatamente nos interessamos e ele nos falou o horário. Na horinha marcada estávamos lá, prontos para ir atrás do palhaço. Não demorou muito e apareceu um homem enorme, fiquei com medo, mas o meu primo me disse que aquilo era uns cavaletes de pau que ele estava em cima, pernas de pau. Eu nunca tinha visto alguém tão alto!
O palhaço nos disse: vocês vão respondendo as perguntas que eu vou fazer e vocês vão cantar um pedaço da música que eu vou ensinar. Vai ser assim:
Palhaço das pernas de pau – Hoje tem espetáculo?
Meninos – Tem sim, senhor!
Palhaço das pernas de pau – No circo asas de prata?
Meninos – É sim, senhor!!
Palhaço das pernas de pau – O espetáculo será sete da noite?
Meninos – É sim, senhor!!!
Agora a música é assim, disse o palhaço das pernas de pau: Quebra-quebra guabiraba, quero ver quebrar, quebra lá que eu quebro cá, quero ver quebrar. O seu Zé foi no boteco – quero ver quebrar – e pediu uma cachaça – quero ver quebrar – quando bebeu a danada – quero ver quebrar - logo deu um peteleco – quero ver quebrar – pegou fogo na sua calça – quero ver quebrar – explodiu feito granada – quero ver quebrar – pediu água pra Raimunda – quero ver quebrar – apaga o fogo da sua bunda... – Quero ver quebrar!!!!!!!!!!!!! – A parte de vocês é só cantar: - quero ver quebrar, tá legal? Vamos lá, ensaiando... Daí vinha outro mote: Quebra-quebra guabiraba, quero ver quebrar, quebra lá que eu quebro cá, quero ver quebrar – Dona Maria José – Quero ver quebrar – Faça logo este café – Quero ver quebrar – que eu já comprei o pão – Quero ver quebrar – Quentinho na padaria – quero ver quebrar – na esquina da São João – Quero ver quebrar – vou levar a minha tia – Quero ver quebrar... Na verdade, o negócio era chamar a atenção para o espetáculo à noite no circo e valia tudo.
Mas houve um momento de apreensão, eu me lembro, quando o palhaço cansado, quase cai das pernas de pau e não fosse um poste de luz bem ao lado, no qual ele se agarrou... Ele teria se espatifado no chão, coitado! Depois o meu primo Francivaldo fez uns cavaletes, feito pernas de pau e andou neles também...
Aquilo tudo a gente ia repetindo pelas ruas da nossa pequena cidade. Poucas ruas, não demorava quase nada e tínhamos o braço carimbado pra entrar no circo à noite. Claro que não tomava banho, pra não apagar a marca do carimbo...
Ficávamos o resto da tarde numa expectativa danada para a chegada da hora do espetáculo circense. E bem antes da hora já estávamos lá. Mostrava com orgulho o carimbo e logo éramos colocados pra dentro do circo, como colaboradores especiais.
O circo encheu naquela noite e nós ficamos felizes. Ganhamos balas e chicletes. Fiquei muito atento à tudo! Era minha primeira vez num circo.
O espetáculo começou. Cachorros que pulavam dentro de uma roda de fogo. O macaco que dava cambalhotas e um jumento, pintado de zebra, onde uma moça se equilibrava com uma sombrinha à mão. Trapezistas que iam pra lá e pra cá, pendurados nas cordas e o meu coração quase pulando fora do peito de pura tensão. A qualquer momento eles vão cair... e realmente um caiu, mas na rede de proteção! E eu pensando que ele ia se esborrachar no chão...
O que mais me chamou a atenção e ficou na minha mente até hoje foram os palhaços. Eles faziam um número de adivinhação. Um ficava na cadeira no meio do palco, com os olhos vendados e o outro fazia as perguntas, pra ele adivinhar... Vai vendo!
- O palhaço perguntador – Segurando a camisa de um homem, no meio da platéia - Que cor é essa camisa, vermelhamente falando?
- O palhaço adivinhão – É... Pera aí! Concentração... Silêncio gente! É... Vermelha!!
- O palhaço perguntador - Palmas, acertou!! È isso mesmo, uma camisa vermelha.
- Novamente o palhaço perguntador – No meio do povo - Canetamente falando, o que eu tenho na mão agora?
- O palhaço adivinhão – Levantou, virou pro lado, caminhou um pouco, caiu... Olhos vendados – É... Um, é uma... Caneta!!! É isso, uma caneta!
- O palhaço perguntador – Palmas gente!! Acertou outra vez! É o maior adivinhão do Brasil!!
- O palhaço perguntador – E agora a pergunta final... Vamos vê se ele adivinha mesmo!?... – Cachorramente falando o que qui está bem atrás de você??
- O palhaço adivinhão – O quê??? Uma cachorra atrás de mim??!!
- O palhaço perguntador – Acertou!!
Palmas e sorrisos e a cachorra correndo atrás dos dois e mordendo a bunda deles e vão daqui e dali, até entrar e desaparecer no camarim.
Na minha inocência infantil nem percebi a dica perfeita para o palhaço “adivinhador” e pensava que ele realmente era o maior adivinhão do mundo... Vermelhamente falando, canetamente falando... Tá bom!...
Desse jeito até eu sei adivinhar, não erro nunca! Sou o grande adivinhão do século!
Depois da festança toda, cansados de tanto rir, lá vinha eu, morrendo de sono e tibungava na rede e só acordava no outro dia com olhos remelentos e vovó a lavar-me com uma água morna e me dava café com cuscuz de milho... E um ovo frito.
Hoje tão distante no tempo e no espaço, choro as lágrimas que não consigo traduzir em palavras felizes de quando eu era apenas uma criança. Fico a sorrir sozinho nas lembranças indeléveis da mente e meneando a cabeça negativamente, penso na crueldade da vida em não permitir que eu seja sempre infantil nas traduções de acontecimentos do presente, remetendo-os na inocência do passado e sendo apenas eu mesmo... Feliz.