Além do Tempo e da Carne

As pessoas subiam e desciam as escadas, comiam lanchinhos, posavam para as fotos, faziam rodinhas, falavam de assuntos que eu não conseguia entrar. Estava um pouco entediado olhando o movimento. Não sabia como tinha ido parar ali - aliás, SABIA, mas não ENTENDIA porque tinha ido -, naquela festa de Halloween do pessoal classe-média-altíssima. Mas tinha cerveja geladinha rolando - e de graça.

Fui a convite de uma amiga do trabalho que era amiga de um amigo da dona da festa - esta última provavelmente devia contar os amigos nos dedos de uma mão por que, pelo que pude notar, a maioria das rodinhas ou era formada grupos de pessoas conhecidas há anos ou de totalmente desconhecidas. Eu não me encaixava em nenhum dos rótulos. Era amigo da amiga do amigo da amiga do amigo da amiga da dona da festa - que estava tão sozinha quanto eu, observando o desenrolar da party.

Bebericava a cerveja e olhava os vampiros e duendes, os corcundas e zumbis, as fadas e os super-heróis. Minha fantasia era meio aleatória - como a de todos. Um carinha fantasiado de esqueleto encostou ao meu lado e começou a puxar conversa. Abri outra lata pra tentar suportá-lo. Falava de trabalho. Estava ali para angariar contatos de trabalho. Claro, além de se divertir e paquerar. Meia lata já tinha ido e eu só balançava a cabeça dizendo que sim ou que não e tentava me esquivar do infeliz que para enfatizar o que falava dava tapinhas no meu braço. Quem falou que seria fácil?

As mulheres da festa me olhavam, desacreditando da minha fantasia. Creio que elas julgavam que ela, a fantasia, era um embuste, uma psicologia reversa barata. Estava fantasiado de padre. O padre entre demônios e elfos e seres mitológicos. O padre secando toda a cerveja que poderia encontrar e não conversava com ninguém, não interagia nos papos, não flertava com a diabinha, nada, só trocava o pé que sujava a parede branca de classe-média-altíssima e bebia o dinheiro deles com ar sorumbático e desinteressado.

A minha anfitriã desapareceu na calada da noite com o Lanterna Verde.

A casa era enorme e não tinha móveis além de alguns sofás e poltronas e uns tapetinhos esparramados no linóleo caro. Alguns casais se agarravam em tais lugares. O som era alto e a seleção musical não era de todo desagradável. Tinha comes à vontade. Canapés, lanchinhos em pães com cara de caro, churrasco. Tinha máquina de fazer fumaça, um daqueles globos cafonas girando e espalhando luzes no quintal enorme de gramado úmido e bem aparadinho. Era uma encenação teatral do Grande Gatsby, pensei.

- Olá, padre.

- Oh, olá... Quem é você?

- Sadie Mae Glutz, prazer.

- O prazer é meu, Sadie.

O pessoal levava a sério esse negócio de festa à fantasia. "Sadie", graças aos Céus, não tinha nada da Susan Atkins além de um vestido entre o vermelho e o rosa que tinha anáguas na cintura e nas mangas. Usava um batom vermelho nos lábios finos e tinha olhos azuis ou verdes e um baita par de pernas. Usava sapatinhos bonitinhos com o peito do pé tatuado à mostra. E conversava com o padre misantropo.

Conversamos. Ela tinha senso de humor ferino, defensivo e agradável - bom, pela ousadia que seu personagem emplaca, deve ter dado pra perceber. Ela não olhava nos meus olhos. Olhava meus lábios. Rapaz, uma mulher incrível daquelas me olhando com a mais pura e sequiosa Luxúria e eu não fazia nada! Estava levando muito a sério esse negócio de festa à fantasia. Ou era a idade dois e quatro chegando.

Mas ela não perdeu tempo e partiu pra cima de mim, me engolindo com aquela boca fina e larga, enfiando a língua na minha garganta, puxando meus cabelos. Me senti impelido a perguntar a quanto tempo ela não levava ferro mas me abstive - eu era o padre da festa. De longe, era uma das cinco mulheres mais lindas que até então tive um contato do tipo. Mas seu beijo não tinha me empolgado em nada. Não tinha vibração, não tinha sabor, não tinha PAIXÃO. Não sei o que não tinha, só sei que não tinha. Não tinha música. E por falar em música...

Eu gostava da música que estava tocando. "You came to me like a dream", cantava a voz vinda de Chicago.

Uma bruxa estacou de repente ao me ver nos braços da Susan Atkins. Tinha queixo e nariz postiços e pontiagudos com uma verruga na ponta. Na verruga do nariz despontavam pêlos enormes. Não saberia dizer como era seu corpo, se era uma bruxa voluptuosa. O vestido era largo. O chapéu era azul celeste, brilhante, ela usava salto alto e tinha as unhas pintadas de cinza metálico. Ela estacou ao me ver, como já falei. Ao longe, o que vi foi a descrição que fiz. Mas os olhos. AQUELES OLHOS...

Não, pensei, não pode ser. Malleus Maleficarum.

Conforme ela foi se aproximando eu fui me descobrindo um covarde. Queria sumir daquele lugar, entrar na lata de cerveja e rolar até o córrego mais próximo ou enfiar a cara no chão igual um avestruz faz. Mas ela se aproximava, se aproximava do padre, do padre beberrão, se aproximava com aqueles olhos castanhos e repuxados e eu me sentia o padre do filme A Profecia olhando o arpão caindo do céu. Aqueles olhos me impingiram sofrimentos que julguei terem se extinguido mas não, não estavam extintos. Não seriam dois anos que limpariam minhas mágoas. Nem vinte anos o faria.

"...the kind that always leaves just as the best part starts".

Virei Sadie para a parede e fiquei de costas para aqueles olhos.

- O que foi? - perguntou Sadie.

- Cansei de olhar as pessoas. A parede me soa mais agradável!

- AH, A PAREDE!?

- É, a parede... Por quê?

- Não, nada. Vem cá, Reverendo Delícia.

Mais lábios. Mais troca de cuspe. Padre cretino. Aqueles olhos. Não conseguia tirá-los da cabeça. Sadie foi desaparecendo. Meu corpo perdeu a sensibilidade, minha mente caiu em divagações, na minha retina imagens do passado ressurgiam, tão mais reais quanto aquela festa e aqueles lábios me procurando, procurando em mim algo impossível de encontrar, pois esse algo não estava ali, à disposição de quem quisesse comprar com dinheiro ou sexo; era algo valioso, guardado pelos dois últimos anos dentro de um cofre que tranquei e joguei a chave fora - mas aqueles olhos eram a chave, a chave que abria o cofre. Fiquei vulnerável, sentia um amargo dentro de mim, um arrepio me percorria a espinha e Sadie o interpretava como tesão e investia mais.

Me desgarrei de seus lábios sem dizer palavra e saí andando à esmo, trôpego. "Olha o padre bebum", alguém grita. Mas eu não estava bêbado - não de álcool. Sentei num banco branco de estilo do século XIX (eu acho), que ficava sob uma árvore um pouco afastada da festa. Olhei aquelas pessoas conversando ao longe. Dançando com copos na mão, gargalhando, tropeçando, querendo transar; todos querendo salvar a noite com a cópula promíscua. Era o que eu andava fazendo desde que...

- Não consigo mais, cara...

- Por quê?

- Acho que... O que eu sentia... Não sinto mais, entende?

Vazio. Aqueles olhos.

- NÃO, não entendo... Porra, não há algo que eu possa fazer?

- Melhor não, não sei, estou tão confusa! Sabe, tenho medo de depois me arrepender de estar fazendo isso. Eu SEI que vou me arrepender, mas o que eu sinto não é mais o mesmo... O beijo não é o mesmo, o sexo, a saudade raramente aparece...

- Mas eu...

Vazio. Eu tinha uma doença que vinha de longe e me causava problemas: resignação. Com um pouco de orgulho. Misture esses dois ingredientes e tenha um taurino teimoso que respeita o que lhe impingem só para não ter que se humilhar com petição seja lá do que for. Eu me sentia vazio, magoado, triste, emputecido. Não compreendia como o que ela sentia se acabou, se sempre compartilhávamos tudo e TUDO; tudo era recíproco, intenso, único. Pra mim continuava sendo, por que pra ela não? Eu não conseguia entender e, no entanto, havia aceitação. Uma vazia aceitação.

E foi assim que eu deixei a mulher da minha vida escapar e entrei em jornadas etílicas e relacionamentos falhos, fugazes, promíscuos. Tudo sempre acabava da mesma forma: no balcão do bar remoendo o dia que deixei Cecília partir.

Cecília era a bruxa de verruga peluda no nariz. Eu reconheceria aqueles olhos em qualquer lugar. Durante muito tempo foram meu lenitivo, meu paliativo, meu porto seguro, meu descanso, minha paz, enfim, meu tudo.

E agora meu nada, meu nada que ninguém preenchia, meu cofre interno que ninguém abria, minha estrada anfractuosa que capotava tudo o que nela tentava andar.

Enquanto tentava explodir as têmporas apertando os dentes e olhava o cadarço do tênis, alguém se aproximou, sentou ao meu lado no banco e colocou a mão na minha nuca. Estremeci. Aquele toque era único. Como que apertava um botão que fazia soar o alarme de todas as minhas células e elas pululavam dentro de mim, me fazendo sentir vivo, sentindo a plenitude da vida.

Abraçamo-nos. Éramos o mesmo molde. Por Deus, existem bilhões de pessoas, bilhões de corpos, de vozes, de cheiros, de cabelos, de lábios, mas sempre tem UM corpo, UMA voz, UM cheiro, enfim, UM TUDO que parece que foi feito especialmente para você. Era assim que eu me sentia com Cecília. Era isso que mais doía em mim: eu havia me tornado um entre esses bilhões de seres que não foram feitos para ela...

- Sinto tanto a sua falta - disse de forma quase inaudível no meu ouvido. Não respondi. Não por que não quis; porque não consegui. A música que começou falava por mim.

Tocava Exploding Boy, do The Cure. As pessoas continuavam com seu ritual de acasalamento.

Olhei Cecília nos olhos. Desmontei sua fantasia. Tirei o chapéu, o nariz, o queixo. O que antes foram piercings agora eram furos que só lhe acentuavam a beleza: no nariz, nos cantos e no centro dos lábios, tanto no inferior quanto no superior.

- Você gosta dessa música, não é? - perguntou, com aquele sorriso mais lindo do mundo.

- É, gosto... - estremeci. Por mais que mil dias tivessem transcorrido desde o primeiro contato, a sensação era a mesma. O mesmo cultuar aqueles olhos castanhos, aqueles cabelos na altura do ombro; cultuar aquela composição da Deusa como se fosse uma esfinge.

- A letra dela é bem bonita e...

- E?

- Não sei, combina com o momento... - ficou visivelmente embaraçada e tentou consertar - Quer dizer, eu...

- Esquece.

- Não tem como esquecer. Lembra que eu falei que iria me arrepender?

- Não tem como esquecer! - Talhei de forma infantil, demonstrando o rancor de uma criança que não esquece uma chinelada. Ela me conhecia o suficiente para ignorar meu temperamento pueril e continuou falando como se eu não tivesse abrido a boca.

- Meu, eu juro que pensei em você durante todo esse tempo... Você não sabe o quanto eu quis voltar e fazer tudo de novo. Eu fui uma idiota temperamental e instável, mas você aceitou de forma tão fácil o fim que, afinal, acabei compreendendo que a dúvida em relação ao sentimento não era minha mas sim sua...

"Tell yourself it couldn't happen, not this way, not today"

- Cara, - continuou - você não sabe como doeu em mim te ver aos beijos com aquela puta agora há pouco. Nunca que eu ia imaginar te encontrar nessa merda de lugar e, sinceramente, não pensei que ia sentir tudo isso aflorar dentro de mim novamente...

Encontrei sua boca. Minhas mãos encontram seus cabelos, suas maçãs do rosto, suas mãos. Continuavam frias. Continuavam com o toque de Midas para transformar minhas angústias em ouro. Éramos como um casal de ursos saindo da hibernação. Estávamos com fome um do outro - muita, diga-se de passagem. Nossas línguas dançavam em harmonia, nossos toques, de forma instintiva, nos estimulavam e nos incitavam à beira da loucura. Paramos o beijo e nos abraçamos o mais apertado que pudemos, com os corações batendo no mesmo compasso, com o ar penetrando os pulmões após um hiato onde o que era inalado era somente gás carbônico. Se um cometa do tamanho da Lua viesse em direção à Terra para destruí-la, eu não me importaria nem um pouco, desde que quando do choque eu estivesse enlaçado por aqueles braços.

- Sabe, eu não me importaria e até acharia bom se o mundo acabasse agora comigo aqui, assim, com você, de novo...

- Mesmo!? - Perguntei incrédulo de como ela formulou meus pensamentos e desejos.

- Você não!?

- Não faz essa cara, porra! Claro que sim.

Outro beijo. Descontrolado, selvagem, cheio da volúpia, do pecado. Enquanto as pessoas encenavam uma versão moderna do romance de Fitzgerald, nós reformulávamos a Idade Média: eu, a Inquisição, ela, a Bruxa. Se atracando na heresia, ignorando o resto do mundo, ignorando as fogueiras, as forcas; ignorando o Céu e o Inferno.

Rodamos pela propriedade. Alguns casais faziam o que podiam para saciar suas vontades no meio das sombras das árvores. Continuamos andando. Encontramos uma casinha de dois cômodos. Estava com a porta aberta, era aconchegante, bem mobiliada e estava com a chave do lado de dentro da porta. Trancamos e fomos até o quarto e ficamos nus, à cinco passos de distância um do outro, em dupla contemplação de corpos; captando as nuances, reconhecendo e descobrindo cicatrizes. Abraçamo-nos. O contato da pele despida foi inebriante. O fogo girava em nossas cabeças.

Mergulhamos um no outro, redescobrindo nossos interiores e protuberâncias, nossos sabores e cheiros e, apesar do tempo que nos separou ser relativamente longo, era como se tivéssemos ficado apenas duas noites sem contato. Mas a libido, a urgência e o tesão pareciam dobrar o tempo do afastamento. Comigo por cima, gozamos simultaneamente naquela cama estranha. Desabei sobre seus seios macios e quis morrer. Até implorei para que fosse acometido por um ataque cardíaco, porra, qualquer coisa, qualquer coisa que tornasse aquele momento derradeiro, pois eu pressentia que, apesar do turbilhão de emoções aparentemente ainda ser o mesmo para ambos, eu sabia, eu tinha a triste e perniciosa sensação de que não daríamos mais certo e eu não suportaria agüentar perder Cecília outra vez. Não nesta vida.

Transamos novamente e pegamos no sono. Acordamos, fizemos café e transamos de novo. O dia já ia alto e nem nos importávamos de quem era a casa. Era nosso ninho de amor e de pecado e nem a polícia nos tiraria daquele lugar que mais parecia a casa do Papai Noel que reproduzem em época de Natal - claro que não seria na Páscoa.

Dormimos novamente.

Acordei com a luz acesa na cara e com Cecília de calcinha e sutiã me apontando uma arma. Havia chorado, pois seus olhos estavam vermelhos e inchados. Amaldiçoei meu sono pesado.

- Que porra é essa?

Suas mãos tremiam.

- Cecília, que porra você está querendo com isso?

Eu tremia e pensava em mil coisas ao mesmo tempo. Horas antes queria que o mundo acabasse e que todos morrêssemos, mas ali, com uma arma apontada pra minha cara, as coisas ficavam diferentes. Um pouquinho diferentes.

- ABAIXA ESSA PORRA!

Ela se assusta com o meu grito como quem sai de um transe e abaixa a arma, vem em minha direção, senta ao meu lado e abre o tambor. Descarregada.

- Caralho, que merda você tem na cabeça? Surtou?

- Olha o que eu fiz enquanto você dormia.

Abriu a mão esquerda e tinham duas balas lá, lado a lado, douradas, ofensivas. Olhei mais atentamente.

- É, são nossos nomes... Fiz com um estilete que achei lá na cozinha.

- Desde quando você anda armada?

- Não ando, achei na gaveta daquele armário ali.

- E o que você está pensando em fazer, sua maluca?

- Adivinha.

Numa perspectiva mais covarde, Hitler e Eva Braun. Numa perspectiva mais romântica, Romeu e Julieta.

Estávamos reinventando a história.

- Tudo bem, entendi.

- E então?

- Quem é o primeiro? Como faremos?

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 20/10/2010
Reeditado em 22/10/2010
Código do texto: T2567245
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