O nascimento de um pai
Acredito na concepção espiritual, pois no fim dos anos 50, havia um belo jovem, olhos penetrantes, vivos e decididos, cabelos pretos bem escovados de topete e brilhantina, jeito malandro amoroso, não gostava de brigar, mas quando estava no meio de uma briga, soltava seu cinto da cintura e se divertia de no final fugir da polícia. Como costumava dizer, “não gosto de brigas, mas luto bem”, estranho dizer que não gostava; pois as contava com um sorriso matreiro e um olhar cheio de orgulho de ter sempre vencido.
Por aqueles tempos, havia uma brincadeira usual entre os adolescentes, as moças tomavam um caderno e em cada página faziam perguntas de cunho pessoal, às quais os amigos, rapazes e moças, após enumerarem-se na primeira página, respondiam as questões como “Já beijou? Tem namorado(a)? O que pensa sobre mulheres de calça comprida? E sobre as mulheres que fumam? Como se chamará seu primeiro filho?” Às estas duas últimas questões, as respostas que este jovem deu ao questionário, me marcaram para sempre:
— O que você pensa sobre as mulheres que fumam? — A resposta: São mulheres que não prestam.
— Como se chamará o seu primeiro filho? — Não será filho, será uma filha, e escreveu meu nome no caderno.
Pela primeira resposta aprendi o quanto o amor por alguém pode transformar-nos, tornar-nos tolerantes, mesmo quando não entendemos ou aceitamos o que vemos nas pessoas que amamos. Pela segunda resposta, desde pequena, tão logo li aquele caderno, sabia que fui concebida muitos anos antes do meu nascimento, não no ventre da minha mãe, mas na mente do meu pai e desde sempre, muito amada.
Quando comecei na minha estrada, em espírito, sabia qual seria o meu destino, mas nos primeiros passos, ao olhar as primeiras imagens do caminho, deslumbrei-me, como um bebê fascinado por luzes e cores, uma criança encantada pelas brincadeiras. Assim, absorta da minha verdade e caminho, imergi em um pequeno mundo, escolhido no início da minha vida. Os limites eram tão próximos, mas a abundância de delírios disfarçava quão pequeno o era. A retomada, tais quais os sonhos de meu pai, ficou para um dia qualquer do futuro.
Aquele rapaz vinha de uma família Santamarense de muitos irmãos, cinco do primeiro casamento de seu pai e oito do segundo, cuja esposa havia falecido e do qual ele era o penúltimo, o caçula dos homens. Sua mãe, uma jovenzinha que casou com um viúvo ao qual não amava — diziam os antigos. Ela morreu jovem, deixando aquele rapaz com quatro ou cinco anos, talvez por isso, ele sempre esteve por conta própria.
Em uma quermesse, ao som de Paul Anka, conheceu uma mocinha tímida, com sorriso delicado, misteriosa de seus anseios, insegura quanto aos seus sonhos, não sabendo até onde eles poderiam ir, já que ela mesma veio de uma vida regada à pobreza e dificuldades, que acompanhavam as famílias nordestinas que chegavam à cidade grande na década de 40.
De suas infâncias eles traziam cada um na bagagem o que completaria o outro. Ele a certeza no amanhã, na abundância, a confiança na própria capacidade e na sua inteligência, assim como a falta dos laços amorosos que unem e alicerçam uma família. Ela trazia as bases das alianças familiares, princípios religiosos e a vontade de aprender, assim como uma visão distorcida de seu próprio merecimento. Juntos estabeleceram um pacto de amor, sobre o qual edificaram uma família, nela eu nasci. Não sei ainda se foram eles que me escolheram ou eu que os escolhi, provavelmente fui eu, pois entre nós três, sobre o meu destino a escolha sempre foi minha.
Entre rompimentos e voltas, um servindo o exército e o outro estudando admissão, mulheres que se rasgavam para conseguir o amor dele, por sinal se rasgaram até o seu túmulo, mas isto já é outra história, finalmente veio o pedido:
— Você se acha capaz de cuidar de uma casa e de uma família?
— Claro que sim.
— Então vou falar com seu pai e iremos nos casar em um ano.
Desta fase pouco se sabe, provavelmente uma época de muita dureza, com pouco tempo e dinheiro para festas e histórias. Finalmente ela com 17 e ele 21, casaram-se.
Foram morar no sítio com o pai dele. Haviam duas casas pequenas geminadas, um terreiro grande, um poço, horta e árvores frutíferas. Viviam momentos de êxtase, ela caçava passarinhos com arapuca, quando ele chegava do trabalho corriam para vê-los. À noite, após o jantar, beijos ardentes, explosão de desejos, liberação de todo o pudor guardado do tempo de namoro, a liberdade finalmente de se entregar ao amor, tornando-os supremos, donos do próprio tempo e senhores um do outro.
Após um ano e sete meses, se bobear eles sabiam a quantidade de dias também, após um aborto involuntário, finalmente chegou o bebê. De um parto de 22 horas, onde a primeira sensação que a mãe teve ao ver que era uma menina, foi a misericórdia ao pensar o quanto aquela bebê, também sofreria ao dar a luz.
Quem dera, que as maiores dores femininas atualmente fossem só as de parto...
O pai dele faleceu de câncer, tão logo a bebê nasceu. Por isso ela tinha e tem a cabeça chata; ficou muito tempo no berço de um lado só, enquanto a mãe cuidava do sogro doente. Antes de morrer, o sogro dividiu o sítio entre os filhos, o jovem herdou um terreno grande, o qual com muito esforço eles conseguiram construir uma casinha pequenina de um quarto, cozinha, terraço e banheiro.
Cinco anos se passaram e nesta casa já havia além de mim, a antiga bebê agora considerada a mocinha, mais duas crianças: uma menina e um menino.
O menino, não me lembro como ele apareceu lá, a menina eu me lembro bem, tinha muitas expectativas a respeito dela, acreditava que ela iria contar histórias para eu dormir e chegaria com um presente para mim, aliás como todos faziam ao vir nos visitar. Mas não foi nada disto, foi totalmente estranho, até surpreendente. Um Gordini azul marinho parou em frente à casa da minha avó, rumo à nossa casa. Minha avó me levou e àquele menininho também, ele era legal, para ver nossa mãe e a outra menina. Pensei: “Puxa, ela veio de carro!” Mas para meu espanto ela estava no colo da minha mãe, era bem pequena, muito menor do que eu imaginara, e todos diziam que ela era linda, eu não notei, achei-a muito pequena. Acho também, que notei que ela não usava maquiagem, é foi isto...
A casa era bastante alegre, brincávamos o dia todo. À noite nos comportávamos o melhor possível, para não cansar meu pai, afinal ele tinha trabalhado muito. Ficávamos como uns anjos à noite, guardávamos as travessuras para o dia.
Meu pai era muito falante, extrovertido, mas às vezes parecia menos que os demais membros da família: tios, tias e avós. Uma vez adorei a sua interferência mais séria, foi quando fiquei mocinha. Uma mania boba que havia, ou há, não sei ao certo; de no primeiro fim de semana da menarca, esse ser o grande assunto do almoço de domingo. Ainda é muito recente essa condição que nos torna um pouco mais adultas, e conversar com todos sobre isso, não é nada fácil. Meu pai fez com que o assunto, as piadinhas e os conselhos que estivessem girando sobre mim, deixassem de ser o tema do almoço da grande família.
Muitas coisas ele me falava, um dia me perguntou, se eles se separassem, aliás, o que nunca aconteceria, com quem eu queria ficar, com ele ou com minha mãe? A língua desenfreada infantil, que não se preocupa em causar mágoas respondeu de primeira: com minha mãe, é claro. Ele respondeu: é isso mesmo; você sabe para que servem os pais? Servem para amar as mães, torná-las felizes, assim, elas cuidam da gente e das crianças e não deixam todo mundo doido na casa. É, o amor dele deixava a casa bem feliz...
Estivemos por mais de 30 anos juntos, ele me levou a várias partidas na várzea; inutilmente a um jogo do Palmeiras, eu sendo Corintiana. Conduziu-me a muitas etapas da vida: ao altar, à maternidade, tentava fazer o que podia para que eu tivesse bastante leite ao dar a luz, se é que mandar os outros fazer canjica e comprar cerveja preta ajudam alguma coisa na produção de leite materno. Ele mostrava-se contrariado quando a profissão me obrigava a tantas viagens longas e distantes, ainda mais eu sendo uma mulher — ele pensava — mas por terceiros soube do orgulho com que falava da filha viajada. Usou do mesmo amor e compreensão para digerir o fim do meu primeiro casamento, talvez tenha se sentido incapaz, remetido a si uma responsabilidade que não havia.
No início de minha carreira fui contadora, hoje apenas de histórias, como ele gostaria de ter visto isto. Isso aumentou meu mundo, uma mudança só possível, pois ironicamente agora uso tudo que ele me deu, muito mais, do que quando me proporcionou.
À medida que o tempo passa, passo a limpo essa história, que muitas e muitas vezes ainda há de ser contada, vingando-me da morte, uma vez que a cada dia, um pai nasce nas minhas memórias.
Acredito na concepção espiritual, pois no fim dos anos 50, havia um belo jovem, olhos penetrantes, vivos e decididos, cabelos pretos bem escovados de topete e brilhantina, jeito malandro amoroso, não gostava de brigar, mas quando estava no meio de uma briga, soltava seu cinto da cintura e se divertia de no final fugir da polícia. Como costumava dizer, “não gosto de brigas, mas luto bem”, estranho dizer que não gostava; pois as contava com um sorriso matreiro e um olhar cheio de orgulho de ter sempre vencido.
Por aqueles tempos, havia uma brincadeira usual entre os adolescentes, as moças tomavam um caderno e em cada página faziam perguntas de cunho pessoal, às quais os amigos, rapazes e moças, após enumerarem-se na primeira página, respondiam as questões como “Já beijou? Tem namorado(a)? O que pensa sobre mulheres de calça comprida? E sobre as mulheres que fumam? Como se chamará seu primeiro filho?” Às estas duas últimas questões, as respostas que este jovem deu ao questionário, me marcaram para sempre:
— O que você pensa sobre as mulheres que fumam? — A resposta: São mulheres que não prestam.
— Como se chamará o seu primeiro filho? — Não será filho, será uma filha, e escreveu meu nome no caderno.
Pela primeira resposta aprendi o quanto o amor por alguém pode transformar-nos, tornar-nos tolerantes, mesmo quando não entendemos ou aceitamos o que vemos nas pessoas que amamos. Pela segunda resposta, desde pequena, tão logo li aquele caderno, sabia que fui concebida muitos anos antes do meu nascimento, não no ventre da minha mãe, mas na mente do meu pai e desde sempre, muito amada.
Quando comecei na minha estrada, em espírito, sabia qual seria o meu destino, mas nos primeiros passos, ao olhar as primeiras imagens do caminho, deslumbrei-me, como um bebê fascinado por luzes e cores, uma criança encantada pelas brincadeiras. Assim, absorta da minha verdade e caminho, imergi em um pequeno mundo, escolhido no início da minha vida. Os limites eram tão próximos, mas a abundância de delírios disfarçava quão pequeno o era. A retomada, tais quais os sonhos de meu pai, ficou para um dia qualquer do futuro.
Aquele rapaz vinha de uma família Santamarense de muitos irmãos, cinco do primeiro casamento de seu pai e oito do segundo, cuja esposa havia falecido e do qual ele era o penúltimo, o caçula dos homens. Sua mãe, uma jovenzinha que casou com um viúvo ao qual não amava — diziam os antigos. Ela morreu jovem, deixando aquele rapaz com quatro ou cinco anos, talvez por isso, ele sempre esteve por conta própria.
Em uma quermesse, ao som de Paul Anka, conheceu uma mocinha tímida, com sorriso delicado, misteriosa de seus anseios, insegura quanto aos seus sonhos, não sabendo até onde eles poderiam ir, já que ela mesma veio de uma vida regada à pobreza e dificuldades, que acompanhavam as famílias nordestinas que chegavam à cidade grande na década de 40.
De suas infâncias eles traziam cada um na bagagem o que completaria o outro. Ele a certeza no amanhã, na abundância, a confiança na própria capacidade e na sua inteligência, assim como a falta dos laços amorosos que unem e alicerçam uma família. Ela trazia as bases das alianças familiares, princípios religiosos e a vontade de aprender, assim como uma visão distorcida de seu próprio merecimento. Juntos estabeleceram um pacto de amor, sobre o qual edificaram uma família, nela eu nasci. Não sei ainda se foram eles que me escolheram ou eu que os escolhi, provavelmente fui eu, pois entre nós três, sobre o meu destino a escolha sempre foi minha.
Entre rompimentos e voltas, um servindo o exército e o outro estudando admissão, mulheres que se rasgavam para conseguir o amor dele, por sinal se rasgaram até o seu túmulo, mas isto já é outra história, finalmente veio o pedido:
— Você se acha capaz de cuidar de uma casa e de uma família?
— Claro que sim.
— Então vou falar com seu pai e iremos nos casar em um ano.
Desta fase pouco se sabe, provavelmente uma época de muita dureza, com pouco tempo e dinheiro para festas e histórias. Finalmente ela com 17 e ele 21, casaram-se.
Foram morar no sítio com o pai dele. Haviam duas casas pequenas geminadas, um terreiro grande, um poço, horta e árvores frutíferas. Viviam momentos de êxtase, ela caçava passarinhos com arapuca, quando ele chegava do trabalho corriam para vê-los. À noite, após o jantar, beijos ardentes, explosão de desejos, liberação de todo o pudor guardado do tempo de namoro, a liberdade finalmente de se entregar ao amor, tornando-os supremos, donos do próprio tempo e senhores um do outro.
Após um ano e sete meses, se bobear eles sabiam a quantidade de dias também, após um aborto involuntário, finalmente chegou o bebê. De um parto de 22 horas, onde a primeira sensação que a mãe teve ao ver que era uma menina, foi a misericórdia ao pensar o quanto aquela bebê, também sofreria ao dar a luz.
Quem dera, que as maiores dores femininas atualmente fossem só as de parto...
O pai dele faleceu de câncer, tão logo a bebê nasceu. Por isso ela tinha e tem a cabeça chata; ficou muito tempo no berço de um lado só, enquanto a mãe cuidava do sogro doente. Antes de morrer, o sogro dividiu o sítio entre os filhos, o jovem herdou um terreno grande, o qual com muito esforço eles conseguiram construir uma casinha pequenina de um quarto, cozinha, terraço e banheiro.
Cinco anos se passaram e nesta casa já havia além de mim, a antiga bebê agora considerada a mocinha, mais duas crianças: uma menina e um menino.
O menino, não me lembro como ele apareceu lá, a menina eu me lembro bem, tinha muitas expectativas a respeito dela, acreditava que ela iria contar histórias para eu dormir e chegaria com um presente para mim, aliás como todos faziam ao vir nos visitar. Mas não foi nada disto, foi totalmente estranho, até surpreendente. Um Gordini azul marinho parou em frente à casa da minha avó, rumo à nossa casa. Minha avó me levou e àquele menininho também, ele era legal, para ver nossa mãe e a outra menina. Pensei: “Puxa, ela veio de carro!” Mas para meu espanto ela estava no colo da minha mãe, era bem pequena, muito menor do que eu imaginara, e todos diziam que ela era linda, eu não notei, achei-a muito pequena. Acho também, que notei que ela não usava maquiagem, é foi isto...
A casa era bastante alegre, brincávamos o dia todo. À noite nos comportávamos o melhor possível, para não cansar meu pai, afinal ele tinha trabalhado muito. Ficávamos como uns anjos à noite, guardávamos as travessuras para o dia.
Meu pai era muito falante, extrovertido, mas às vezes parecia menos que os demais membros da família: tios, tias e avós. Uma vez adorei a sua interferência mais séria, foi quando fiquei mocinha. Uma mania boba que havia, ou há, não sei ao certo; de no primeiro fim de semana da menarca, esse ser o grande assunto do almoço de domingo. Ainda é muito recente essa condição que nos torna um pouco mais adultas, e conversar com todos sobre isso, não é nada fácil. Meu pai fez com que o assunto, as piadinhas e os conselhos que estivessem girando sobre mim, deixassem de ser o tema do almoço da grande família.
Muitas coisas ele me falava, um dia me perguntou, se eles se separassem, aliás, o que nunca aconteceria, com quem eu queria ficar, com ele ou com minha mãe? A língua desenfreada infantil, que não se preocupa em causar mágoas respondeu de primeira: com minha mãe, é claro. Ele respondeu: é isso mesmo; você sabe para que servem os pais? Servem para amar as mães, torná-las felizes, assim, elas cuidam da gente e das crianças e não deixam todo mundo doido na casa. É, o amor dele deixava a casa bem feliz...
Estivemos por mais de 30 anos juntos, ele me levou a várias partidas na várzea; inutilmente a um jogo do Palmeiras, eu sendo Corintiana. Conduziu-me a muitas etapas da vida: ao altar, à maternidade, tentava fazer o que podia para que eu tivesse bastante leite ao dar a luz, se é que mandar os outros fazer canjica e comprar cerveja preta ajudam alguma coisa na produção de leite materno. Ele mostrava-se contrariado quando a profissão me obrigava a tantas viagens longas e distantes, ainda mais eu sendo uma mulher — ele pensava — mas por terceiros soube do orgulho com que falava da filha viajada. Usou do mesmo amor e compreensão para digerir o fim do meu primeiro casamento, talvez tenha se sentido incapaz, remetido a si uma responsabilidade que não havia.
No início de minha carreira fui contadora, hoje apenas de histórias, como ele gostaria de ter visto isto. Isso aumentou meu mundo, uma mudança só possível, pois ironicamente agora uso tudo que ele me deu, muito mais, do que quando me proporcionou.
À medida que o tempo passa, passo a limpo essa história, que muitas e muitas vezes ainda há de ser contada, vingando-me da morte, uma vez que a cada dia, um pai nasce nas minhas memórias.