EX FUMANTE

Agoniada ela olha o relógio, passaram- se apenas duas horas, mas parece que faz uma eternidade. Por que será que nos momentos de agonia o tempo demora passar?

Ela está bem. Olha a vida lá fora pela janela aberta da sala. As árvores agasalham pássaros sonoros que assoviam despreocupadamente.

Ela pensa:

- Será que os animais que não têm vícios são mais felizes que nós que temos tantos?

Decidiu nesse dia parar de fumar. Poderia ter jogado o maço fora e pronto. Mas preferiu mostrar que a força de vontade e principalmente a teimosia que é seu forte prevalecerão e mantém o cigarro bem a vista, ao alcance de suas mãos nervosas.

Liga o aparelho de DVD, assiste a um filme; sente fome. Vai até a cozinha abre a geladeira e encontra doce e pudins. Não pega nada, afinal de contas o açúcar faz a vontade de fumar se acender. Melhor comer algo salgado. Fica matutando entre a geladeira e o armário quando tem a impressão de ouvir uma voz dissimulada e cheia de malicia no ouvido esquerdo:

- O que você precisa está em cima do criado mudo no seu quarto. Um só não tem importância. Unzinho só!

Trava uma luta insana:

- Não! Não! Não! Nenhum... Eu parei!

Quase seis horas sem dar uma pitada. Organizara um churrasco em casa, dali a pouco os amigos começarão a chegar. No grupo de amigos ela é a unica fumante. Sente- se vitoriosa, pois tem certeza que receberá elogios, que todos vão comemorar a sábia decisão que ela tomou.

Ainda na cozinha garimpando umas azeitonas pretas e verdes, ouve um barulho estranho vindo da sala. Corre para ver se algum amigo chegou.

Sentado no sofá ela encontra um homem desconhecido, é loiro, usa terno preto e chapéu da mesma cor, a barba dourada bem aparada se destaca em seu rosto, os olhos estão escondidos sob as abas do chapéu, mas tem a nítida impressão de ver um lampejo vermelho no olhar no momento que ele movimenta o rosto para fita- la.

- Quem é você? Pergunta atônita

- Estou aqui para dar uma força na sua decisão de ser ex fumante. Vim lembrar- lhe que tens o livre arbítrio, se gostas de fumar, de sentir o gosto da nicotina e de ver a fumaça tecendo desenhos no ar, ninguém pode tirar a liberdade de escolha de continuar usufruindo do cigarro para ter paz e acabar com a ansiedade cotidiana.

Não precisa parar um hábito apenas para agradar outras pessoas. A indústria de cigarros é minha grande aliada, pois comanda tanto quanto eu legiões de pessoas. Nesse momento ao terminar a frase ele solta uma sonora gargalhada e repete:

- Milhões de consumidores fiéis.

Os fabricantes têm lucros vultosos, e o que mais me agrada nessa parceria é que seus melhores clientes morrem um a um, pois o cigarro mata mais que drogas ilegais. Põe- se a rir descaradamente.

A ex fumante tomada de nervosismo manda embora o intruso, cuja presença lhe causa náuseas, quer que ele desapareça de sua casa de sua vida. Mas ele recusa- se a sair e insiste com ela:

- Fume. Apenas um para acalmar o nervosismo.

Responda- me:

- Qual o pecado de fumar? Nenhum, pois você não está prejudicando ninguém.

Agora então ficou muito melhor, isolou- se o fumante, você fuma só e feliz.

- Qual o crime comete um fumante? Nenhum! Está tudo na legalidade.

Cigarro mata, apregoa-se a quatro cantos, e daí? Todos vão morrer um dia. Você não aproveita bem sua vida? Qual a diferença um dia a mais ou um a menos? Dependendo terás eternamente minha companhia...

O prepotente visitante não a encarava, às vezes punha- se de pé andando de um lado para outro enquanto vomitava seu discurso, para logo em seguida voltar a sentar escarrapachado no sofá com os pés em cima da mesinha de centro, enquanto fuma um aromático charuto cubano preso numa elegante piteira dourada.

Bem que a mãe lhe dissera diversas vezes:

- Minha filha larga desse vicio, cigarro é vela que acende- se para o diabo. Se fosse pra gente fumar, já nascia com uma chaminé na cabeça.

'O coisa' ruim que tomara conta da sala continua enfático seu discurso:

- Autoridades civis e militares fumam, as eclesiásticas também. Até médicos fumam, atestando assim que os malefícios da nicotina não são tão terríveis como retratados nos maços de cigarro.

Responda- me que mérito terá parando de fumar? Teus amigos a aplaudirão, mas nos momentos de solidão qual deles estará aqui para segurar tua mão? Nos momentos de ansiedade, de duras provas, quem será teu calmante, senão o cigarro? Sabes que esse estará sempre ao teu alcance. Alivio para noites solitárias e para problemas sem remédios, companheiro nos momentos de descontração e farras com os amigos.

Tem mais, paras de fumar e tua mãe vai jogar- te na cara:

- “Viu como sempre tenho razão”?

O cigarro tem o seu lado bom, afinal as indústrias desse ramo geram milhões de empregos desde o do plantador de fumo, até o empacotador, transportador, entregador e vendedor. Milhões de pessoas se alimentam do cigarro.

E você é apenas a pontinha do iceberg, por isso estou aqui, para não deixar que cometa essa asneira de jogar fora um amigo tão solícito de todos os momentos. Nesse instante gargalhou tão alto que sua risada infame ecoou por todo o recinto.

Ela de repente acorda suando, agoniada recita a oração de São Miguel Arcanjo enquanto senta-se na cama persignando- se várias vezes exclamando em alta voz entrecortada por acessos de arrepios:

- Cruzes, ainda bem que não fumo, odeio cigarros. Se eu fosse viciada em cigarro ficaria cismada, não saberia dizer se sonhei ou tive uma visão.

Faz outra vez o sinal da cruz e prepara- se para deitar, antes olha para o relógio na cabeceira da cama, os ponteiros unidos apontam para o teto.

Meia noite e sentado aos pés da cama está o homem loiro de chapéu escuro que fala com voz grossa e rouca:

- Não gosta de cigarros, mas não fica sem teu narguile?

O cheiro doce do fumo de morango, seu preferido, espalha- se pelo recinto.