AS APARÊNCIAS ENGANAM

Elizeu foi contratado para ser o caseiro no sitio próximo da fazenda onde meus pais moram. Logo que começou a trabalhar fez amizade com meu pai, que era o único vizinho que havia por lá.

Aparecera um dia e se apresentara, disse que morava com a família a esposa Miriam e dois filhos pequenos um menino de nome Daniel, e a menina de nome Sara. Ele enchia a boca para dizer que sua família é abençoada porque todos têm nomes bíblicos. Era evangélico, e por muitas vezes convidou- nos para participar dos cultos que se realizavam em sua casa. Homem trabalhador mudou completamente a fachada e o quintal do sitio. Seu Antonio, o proprietário tivera outros caseiros, mas há um ano, desde que Elizeu apareceu pedindo o emprego que a propriedade está a seu gosto. Nunca vira antes um terreiro tão bem varrido, as plantações tão bem cuidadas e os animais seguiam o mesmo ritmo, o funcionário era perfeito.

Depois que ele fizera amizade conosco, pescávamos juntos e conversávamos bastante e ele sempre contava ótimas histórias de sua vida. A filhinha dele devia ter uns oito anos de idade e criada sob os ensinamentos da igreja do pai, conversava comigo assuntos dessa natureza:

- Seu Miguel quando eu ficar moça meu cabelo vai estar quase no chão, vou fazer lindas tranças.

Eu ficava imaginando como seria, pois na idade dela o cabelo já passava da cintura.

- Ela continuava, é pecado pintar os cabelos, terei grossas tranças branquinhas quando estiver velha.

O sonho da menina é ter em casa uma televisão bem grande, coisa que ela adora mas assiste apenas quando o seu Antonio patrão do seu pai está em casa, e os pais permitem que ela vá para lá, ou quando vão passear na fazenda de meus pais. Eles não podem ter o aparelho em casa porque o pastor que os conduz diz que não é lícito.

Meu pai pegou tanta confiança no amigo que o chamava apenas de Eli, e entregara a ele uma cópia da chave do barracão onde guardava as coisas de valor que usava na propriedade e também as tralhas de pescaria. No aniversário de meu pai, eu e meus irmãos dávamos de presente molinetes e carretilhas importadas e as ultimas novidades de varas que havia no mercado. Seu Tenório meu pai, tinha muito ciúmes desses presentes que ganhava e das caríssimas iscas artificiais, mas com o caseiro amigo ele dividia sem reclamar.

Embora morasse na cidade, passávamos bem dizer todos os fins de semana com meus pais, ficava relativamente perto, para meus filhos era sagrado isso, esperavam ansiosos pela sexta feira a tarde quando minha esposa aguardava que eu chegasse do trabalho e eles da escola com tudo arrumado, a euforia era geral, minha filha Maria Eduarda dizia:

- Que bom sexta feira vamos pra roça do vovô, comer pão de queijo da vovó, doces e queijos, que delicia!

- Você só pensa em comer, Duda, ta virando uma bola, o irmão caçoava dela.

Meu filho Lucas gostava de ir para pescar com o avô e o Eli, eu também apreciava essas pescarias.

Estranho que o bom caseiro nunca aceitava comer conosco quando estava sozinho, muitas vezes chegava na hora do almoço, do jantar ou do lanche da tarde e minha mãe gentilmente oferecia:

- Come com a gente, Eli!

- Não senhora dona Maria. Agradecido, Jesus abençoa! Vou almoçar com a Miriam e os meninos.

Minha mãe arrumava uma vasilha com algumas coisas gostosas e dava para ele levar. Ele agradecia sempre com um “Jesus Abençoa!” e um” Deus permita que nunca falte”.

Engraçado que seu Antonio sisudo e sistemático só tecia elogios ao funcionário, meu pai havia se tornado um grande amigo dele, eu também nutria uma grande simpatia por ele, pela família toda, inclusive pela falante menininha cabeluda, mas minha mãe tinha um pé atrás com ele:

Dizia sempre :

- Esse homem “é muito demais” pra meu gosto, fico com a pulga atrás da orelha sempre que conversamos, tem um trem errado, só não sei o que é.

Meu pai retrucava:

- Maria, deixa de implicar com o rapaz, ele é bom. É cisma sua. Não vê como ele trata a mulher dele? Chama a esposa de meu anjo, não briga nem bate nos filhos e são umas gracinhas as crianças.

Às vezes eu pensava: ‘mamãe nunca estudou psicologia, mas conhece bem as pessoas, sempre que analisa alguém é batata sua conclusão’. Mas acho que dessa vez seu sexto sentido falhou.

A casa deles era frequentada em sua totalidade por crentes, dei carona algumas vezes para Eli e a família participarem dos cultos na casa de algum irmão de igreja, todos moravam numa vila próxima, às vezes ele ia sozinho a cavalo para resolver umas coisas, outras ia de bicicleta.

O filho do seu Antonio, doutor Marcos é um famoso advogado criminalista, tínhamos muito em comum, inclusive a profissão. Éramos amigos há uns doze anos, desde que compraram as terras vizinhas.

Marcos aparecia nas férias, passava uns dias com a família no sitio, gostava pouco de pescar, esse era um dos motivos de preferir passar as férias na fazenda, pois seu Antonio e a família consideraM o sitio apenas como lazer de pescaria, tanto que a criação e plantação são de subsistência para sua família quando estão por lá e para o caseiro. Seu Antonio não tem data certa para aparecer o único dia certo é do pagamento do Elizeu, quando traz também as compras do mês, exageradamente farta com chocolates e bolachas para as crianças. Lembro- me da ultima vez que Marcos chegou com a esposa e os dois meninos. O caseiro correu para ajudar descer as malas da caminhonete, eu estava lá com meu pai íamos pescar. O que me chamou a atenção foi o jeito que Marcos olhou para Elizeu. Eu perguntei tudo bem? Ele disse:

- Miguel, eu tenho a impressão que conheço esse homem de algum lugar, só não me lembro de onde, quero fixar melhor as vistas sobre ele, mas nunca o encontro o suficiente. Ainda vou me lembrar, tenho memória de elefante. Depois falamos sobre outros assuntos e não sei por que o Eli desistiu da pescaria, mesmo sendo tão solícito quando chegam visitas, não deu o ar da graça, a mulher dele que veio servir sozinha e cuidar da churrasqueira, disse que ele estava com muita dor de cabeça e febril. Seu Antonio dava uma gorda gorjeta quando havia visitas em casa e o casal sempre atendia a todos com presteza.

Outro fato que me faz recordar desse homem que fazia questão de sempre se mostrar gentil e educado é o seguinte:

Minha mãe matou um grande porco capado que tinha carne e banha de sobra. Ela guardou o que coube de carne no freezer, na geladeira, fez os pacotes para que eu levasse e ainda sobrou muita coisa. Então meu pai decidiu levar um pouco para o Elizeu, ele guardaria no freezer para seu Antonio e ainda sobraria uns quilos para ele. Já passava das 20 horas então eu me prontifiquei a ir com ele porque era mais fácil ir pelo rio de canoa, e não achava bom ele ir sozinho. Pegamos as carnes e a manta de banha, vestimos o colete salva vidas e blusa, porque na beira do rio é sempre muito frio. Quando estávamos chegando eu desliguei o motor e deixei a corredeira nos conduzir, a luz da casa de Eli estava acesa, quando meu pai de lanterna na mão ia chamar por ele, ouvimos uma discussão, a mulher chorava e dizia umas coisas que não podíamos entender, estávamos longe. As crianças choravam, ouvimos o filho dele soluçando, ele era um menino sempre muito calado, não se enturmava com as outras crianças, minha mãe dizia que o olhar dele era de criança que sofre maus tratos.

Meu pai retrucava:

- Maltrato de quem Maria? E fazia um muxoxo.

Nessa hora que ouvíamos o barulho de alguma coisa batendo e os choros daquela casa, pensei nas profecias de minha mãe.

Mas meu pai, criado na roça, não se intromete na vida de ninguém, disse- me apenas:

- Vamos Miguel, “Briga de marido e mulher ninguém mete a colher.” Amanhã voltamos com a carne. Fomos embora.

Programamos viajar nas férias de janeiro, vamos para o litoral, nossa família é quase peixe, onze meses de água doce e um mês de água salgada. Retornamos bronzeados e cansados e corremos para a fazenda, todos com saudades de respirar o ar puro da roça. Quando cheguei minha mãe eufórica beijou todos nós e pegou minha esposa pelo braço e foi falando:

- Márcia quero te contar uma coisa fia, vem cá, quando eu cismo querida pode saber. As duas foram para a cozinha. Meu pai estava estranho, brincou com as crianças, mas senti que queria ficar a sós comigo.

Miguel, aconteceu uma coisa absurda por aqui, com o caseiro do seu Antonio, o Elizeu.

- Sei quem é o Eli, pai, mas o que houve?

- A policia baixou aqui e levou ele preso. O nome dele não é Eliseu coisa nenhuma é Valdecir, bandido perigoso procurado pela policia. Chegaram aqui bem no dia do culto, foi até bom porque os irmãos da igreja levaram a esposa e os filhos embora. Seu Antonio me disse que o filho dele o doutor Marcos lembrou- se de onde conhecia o Eli, ou o Valdê..., ah o bandido! Era do cartaz da delegacia, traficante foragido, bandido de alta periculosidade, condenado por roubo a mão armada e latrocínio. Batia na mulher e nos filhos. Meu pai ficou em silencio por um momento depois falou:

- Ele tinha a chave do barracão, filho!

Nisso minha mãe entrou trazendo uma bandeja de café, pão de queijo e bolo de cenoura, e com aquele jeito maroto dela falou:

- Viu que tinha um trem errado com ele? As aparências enganam!