O escritor fantasma e o fantasma escritor

Meu nome é Eduardo e sou um escritor fantasma. Tenho talento para escrever, mas não tenho interesse em ver meu nome associado a qualquer tipo de livro. Ainda espero pelo livro perfeito. Aquele no qual irei colocar meu nome.

Enquanto não chega esse dia, coloco meu talento à disposição de pessoas menos criativas. Já escrevi muitas “autobiografias”. A maioria altamente elogiada pela crítica e desconhecida pelo público. Afinal, no Brasil, quem se interessa em ler a história de um general da época da ditadura ou de uma ex-vedete do teatro de revista? O meu livro mais vendido foi a autobiografia de uma decadente atriz de novela e isso só por que a maior parte da história era invenção minha, pois a vida contada por ela era extremamente chata, sendo obrigado a tornar o assunto um pouco mais interessante. No início ela não gostara nem um pouco, foi difícil convencê-la, mas quando ela leu os primeiros rascunhos, deu carta branca para que eu continuasse.

Sou advogado, mas não me interesso muito por essa profissão. Só me formei, clichê dos clichês, por exigência dos meus pais. Tenho um escritório no centro da cidade. Meu pai paga o aluguel. Pego alguns casos, o suficiente para as despesas do mês. Não sou uma pessoa muito ambiciosa e me contento com pouco. Talvez por isso tenha tido apenas um casamento, que durou pouco. Logo minha mulher percebeu que eu não tinha interesse nenhum em crescer.

O telefone tocou em uma tarde de quinta-feira, outro cliente ameaçado de ser preso por não pagar a pensão, pensei. Minha secretária já havia saído – ela é estagiária de direito. Atendi. Era uma mulher. Perguntou-me se era o Eduardo, escritor, quem estava falando. Sim disse, sou eu. Gostaria de marcar um horário com o senhor. Tenho uma proposta para um livro autobiográfico. O senhor poderia vir até minha residência? Depende de onde a senhora mora.

Anotei o endereço, não era longe do escritório, em quinze minutos no máximo estaria lá.

O apartamento ficava em um dos condomínios mais luxuosos da cidade. O porteiro me anunciou e tive a entrada liberada. Ela morava na cobertura. Gente rica, muito rica, pensei, enquanto estava no elevador.

A empregada abriu a porta e me levou até uma sala, extremamente bem decorada. Somente o sofá onde me sentei deveria custar o preço da minha faculdade de direito – da anuidade e não da mensalidade.

Logo minha possível cliente apareceu. Uma senhora muito bem apessoada, parecendo ter pouco mais de 40 anos, mas quem poderia dizer com certeza? Hoje em dia, essas ricaças refazem o corpo a cada ano.

Muito prazer em conhecê-lo pessoalmente sr. Eduardo. Como o senhor já deve estar ciente, tudo que conversarmos aqui deverá ficar somente entre nós, certo? Sim, respondi.

Meu marido foi um homem extremamente rico e influente, amigo de presidentes, políticos e grandes empresários. Mas pouco conhecido pela Imprensa, pois não gostava de aparecer, preferindo agir nos bastidores.

Ele morreu há dois meses, em nossa casa de campo. Na semana passada, quando lá estive novamente, ele me apareceu no quarto, dizendo que queria escrever sua autobiografia. Impossível, disse eu, você não é nenhum Brás Cubas e eu não sou Machado de Assis. Ele respondeu que precisava deixar registrada sua história e enquanto não fizesse isso seria obrigado a vagar pela eternidade sem ter direito ao descanso eterno. Ele logo desapareceu, na manhã seguinte pensei tratar-se de um sonho, mas à noite ele retornou. Pretendia ficar um mês por lá, mas resolvi voltar logo para a capital, pois não estava mais conseguindo dormir. Mas ele continuou aparecendo, mesmo aqui, sem falhar uma única noite!

Conversei com minhas amigas sobre isso, e elas se fartaram de rir, não acreditando nem um pouco na minha história, porém uma delas disse em tom de brincadeira: “para um fantasma escritor a única solução é um escritor fantasma” e todas caíram novamente na gargalhada. Fui para casa pensando no assunto e resolvi me aconselhar com o dr. Pestana, nosso advogado. Ele não tinha idéia de como contatar uma pessoa como o senhor. Resolvi então pesquisar no google. Não imaginava que fosse encontrar tantas referências com esse tema. Um escritor fantasma não deveria ser anônimo? Sim, respondi-lhe, somos anônimos após escrevermos um livro, não antes. Afinal como iríamos divulgar nossos trabalhos? Em uma convenção de escritores fantasmas? Isso só existe na ficção.

Ela começou então a falar sobre negócios. Escreveu em um papel um valor e me entregou. Fiz o possível para não me mostrar surpreso. Era um valor em torno de dez vezes o que eu estava acostumado a cobrar. Eu teria um prazo para concluir a obra, não mais que três meses. Para todos os efeitos, após a conclusão do livro, a viúva iria divulgar na imprensa que havia encontrado, entre as coisas do marido, o manuscrito de um livro e que após uma avaliação junto aos advogados, havia decidido publicá-lo. E logicamente que eu teria que assinar um documento de confidencialidade, me comprometendo a não divulgar a verdade. Mas quem iria acreditar que o livro havia sido escrito após a morte do autor?

Falei para a senhora que não era espírita, nem médium e que não acreditava em fantasmas.

Tudo bem ela respondeu. Só lhe peço que vá até nossa casa de campo, passe um final de semana por lá. Caso meu falecido marido não apareça, o senhor pode voltar e lhe pagarei as despesas, mais 10 % do valor oferecido. Mas se ele aparecer, o senhor deverá ficar lá o tempo suficiente para que o livro seja concluído, dentro do prazo estipulado.

Eu não tinha muito a perder. Não havia por que não aceitar a proposta. Aceito, disse. Muito bem, respondeu a senhora. Darei ordens ao meu advogado para redigir o contrato e ele irá passar em seu escritório amanhã. No sábado pela manhã meu motorista passará em sua residência, para levá-lo à nossa casa de campo.

Tudo correu conforme combinado. O advogado apareceu. Assinei o contrato e no sábado de manhã estava a caminho da casa de campo.

Ficava em uma das fazendas da família. Casa grande, dava para se perder dentro dela, Por fora tinha o estilo daqueles casarões da época do império, mas por dentro percebia-se facilmente que havia sido modernizada. Todos os quartos tinham suíte. Havia uma grande biblioteca. Os empregados que trabalhavam no interior da casa, dormiam em uma casa menor, pouco distante. Instalei-me no quarto indicado, bastante espaçoso e aconchegante. Havia na casa três empregadas, Maria, Marieta e Juliana. As duas últimas eram filhas de Maria, que também era a cozinheira. Após o jantar elas se retiraram. Maria havia me dito que tinham recebidos ordens de me deixar sozinho na casa após as 20:00 hs, só retornando no dia seguinte, às 7:00 hs para preparar o café.

Fui para a sala de TV. Liguei a TV e fiquei assistindo a um filme no canal por assinatura. Próximo da meia-noite – haverá alguma regra sobre esse horário no padrão de comportamento dos fantasmas – ouvi um barulho no andar de cima. Subi. A porta do quarto principal estava aberta. Entrei. Acendi a luz. Ao pé da cama estava sentado um senhor, idade já avançada, pálido, e com uma expressão ao mesmo tempo desanimada e satisfeita. Vejo que minha mulher atendeu ao meu pedido. Por favor, sente-se. Temos muito que conversar. Eu só posso ficar contigo por no máximo duas horas por noite, então não vamos perder tempo. Tenho um livro para escrever.

Fiz o que ele pediu, sentei-me, abri meu caderno de notas e começamos a conversar. Eu nunca havia visto um fantasma antes, nem mesmo acreditava em sua existência, mas minha reação foi perfeitamente normal. Não me assustei, o aspecto dele não era assustador e ele não tinha nem a evanescência, nem as correntes típicas dos fantasmas dos livros que estamos acostumados a ler.

Percebi com o tempo que gostava da companhia dele. As duas horas noturnas que passávamos juntos me faziam bem, ele era um excelente contador de histórias e eu era um excelente escritor. E ele contava histórias que iriam desagradar a muitas pessoas influentes. A publicação do livro seria um escândalo e um sucesso como eu nunca tinha tido antes. O assunto mais polêmico, que cheguei até a pensar em não incluir no livro, era o envolvimento de um ex-governador em pedofilia e tráfico de mulheres. Segundo o meu amigo fantasma (eu já o considerava assim), essa figura pública, que chegou a criar em seu primeiro mandato uma comissão de investigação de pedofilia na internet, era uma dos membros mais ativos de um grupo, formado por outros figurões, que se reunia periodicamente em uma fazenda, para passar o final de semana com meninas e meninos na faixa etária de no máximo 12 anos. Aquilo me revoltou profundamente. Pedi-lhe provas, pois era arriscado demais a sua divulgação e apesar de ele estar morto, a viúva poderia ser processada por isso. Ele então me indicou um esconderijo que havia no piso da biblioteca, onde encontrei algumas fotos e cópias de emails trocados pelo ex-governador e outros empresários conhecidos do nosso Estado. Eu tinha uma bomba nas mãos e não sabia se realmente queria detoná-la ou não.

Liguei para a viúva, informando sobre o ocorrido. Ela não acreditou nas minhas palavras, disse nunca ter ouvido isso do marido dele, enquanto era vivo e me pediu para ir até seu apartamento, levando os rascunhos do que eu já tinha, mais as fotos e os demais documentos.

Sem desconfiar de nada, peguei o carro e me dirigi à capital. Era uma noite sem luar. No meio do caminho, com a estrada deserta, me deparei com um carro parado no acostamento. Assim que passei, ele se moveu, ficando atrás de mim. Mais à frente ele acelerou, ficou ao meu lado e me fechou, me obrigando a parar. Aquilo me assustou. Do carro saíram três homens, estavam armados. Não tive tempo de reagir, não esperava por aquilo. Atiraram, muitas vezes. Caí no banco, com tempo suficiente de vê-los abrindo as portas e pegando minha maleta, meu notebook e a pasta de documentos no banco de trás. Então eu morri.

Pois é, morri. Ao escrever a autobiografia de um fantasma, acabei me tornando um.

DIMAS ROCHA
Enviado por DIMAS ROCHA em 15/10/2010
Reeditado em 15/10/2010
Código do texto: T2557681
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