Não acontece aos homens aquilo que eles merecem, mas sim o que lhes assemelha”.
                                                                                                   São Vicente de Paula
 
Pedro e Paulo

Paulo fez setenta anos no mês passado. Em sua longa carreira profissional, que começou aos quinze anos, fez um pouco de tudo. Foi vendedor de gibis na feira, engraxate, office-boy em um escritório, operário em fábricas, professor secundário e universitário, e por fim, aposentou-se como funcionário público. Formou-se em filosofia e direito, e agora que a lei não permite que ele continue trabalhando no serviço público em razão da idade, pediu aposentadoria. Mas foi só por isso que saiu, senão continuaria trabalhando até morrer.
Mas não está nem um pouco preocupado com fato de ter que mudar uma rotina que manteve durante mais de cinquenta anos. Sua vida é bastante agitada. Tem planos de estabelecer-se como advogado e está pensando também em aprender a tocar violão, a falar inglês e francês, e já intimou um dos netos, que é “fera” em informática, a ensinar-lhe a trabalhar com o computador.
Pretende também escrever um livro. Quer igualmente fazer as viagens que não teve tempo para fazer, para lugares distantes, exóticos, onde possa conhecer pessoas diferentes, interessantes, outras culturas, experimentar molhos e paladares os mais diversos. A aposentaria, para ele, é uma chance de viver e fazer um monte de coisas que não pode fazer ainda por falta de tempo e oportunidade.
Associou-se a um clube de serviços, e além dos trabalhos comunitários que faz, arrumou um monte de amigos novos, com os quais almoça, janta, viaja e desenvolve uma intensa vida social.
Pedro também fez setenta anos no mês passado. Da mesma forma que Paulo, trabalhou muito, desde os quinze anos, fazendo uma série de coisas. Foi operário de fábrica, estudou mecânica no Senai, tornou-se engenheiro mecânico e aposentou-se cerca de um ano atrás, depois de mais de cinquenta anos de trabalho duro.
Pedro sempre sonhou com esse dia, esse momento maravilhoso de sua vida, em que não precisaria mais levantar cedo, dirigir por estradas e ruas entupidas de carros despejando fumaça nos seus olhos, com aquele cheiro de gasolina em seu nariz, motoqueiros chutando os espelhos do seu carro e buzinadas estridentes em seus ouvidos.
Depois que aposentou, poucas pessoas tem visto Pedro. Ele se levanta por volta das dez horas, e às vezes nem tira o pijama. Quando tem vontade, dá uma volta pela cidade, para, ao meio dia, em um bar, toma uma cerveja e depois volta para casa. Almoça, puxa uma soneca, e ali pelas seis da tarde liga a TV, que assiste até por volta da uma da madrugada.
Ás vezes sai para pescar. Mas como não gosta de muita atividade, vai ao pesqueiro mais próximo. Lá é mais fácil pegar o peixe. Não tem aquela luta que normalmente ocorre quando se pesca num rio e se pega um peixe grande.
Desde que parou de trabalhar Pedro já engordou uns oito ou nove quilos. Nunca gostou de viajar. O máximo que fez até agora é umas duas ou três esticadas de carro até Piracicaba, no interior de São Paulo, onde mora uma de suas filhas casada.
Pedro sonhou durante a vida inteira com aposentadoria. Sempre pensou nela como uma oportunidade para não precisar fazer mais nada na vida. Foi convidado várias vezes para participar de clubes de serviços, grupos de atuação comunitária, trabalho voluntário, etc., mas sempre pede um tempo para pensar. Na verdade, ele acha que prestar serviços comunitários é muito enfadonho e sempre desconfia das motivações que envolvem essa gente. Pensa que alguém, políticos principalmente, sempre se aproveitam desses grupos para tirar vantagens pessoais.
Já pensou em praticar algum esporte, mas o peso extra que adquiriu e a vida sedentária que leva o tornaram muito preguiçoso para participar de atividades físicas no clube do qual é sócio a mais de trinta anos. Por isso fica adiando a matricula para as aulas de tênis e natação, com a desculpa que primeiro precisa fazer um regime para emagrecer. Só que sempre adia para a segunda-feira seguinte o início do regime.

Paulo costuma dizer que a vida é muito bonita e só lamenta que o dia tenha apenas 24 horas e delas ele ainda tenha que tirar algumas horas para dormir.
Pedro acha que a vida está ficando muito chata e que o tempo demora muito para passar.
Paulo acha que um pouco de exercício e bastante atividade pode lhe dar ainda muitos anos de vida com muita qualidade. Nós o encontraremos no clube pelo menos duas vezes por semana. Religiosamente pratica natação e joga tênis. Também adora enfrentar desafios e fazer coisas novas. Só lamenta que o dia acabe tão rápido, que muitas vezes parece que não dá para fazer nada.
Pedro lamenta o fato de já ter feito setenta anos e que a vida esteja acabando. Daqui para frente é apenas decadência, diz ele. Por isso acha que é melhor não ficar procurando chifres em cabeça de cavalo. Melhor ficar em casa esperando o tempo passar.
Paulo acha que pode viver muitos anos ainda e por isso vive pensando no que poderá fazer assim que terminar o projeto no qual está engajado no momento.
Pedro dorme com a desagradável impressão que amanhã será um dia mais enfadonho do que foi hoje.
Não há nada de estranho na história de Pedro e Paulo. Cada um tem direito de viver a vida á sua maneira e pensar o que bem quiser. Pensar e viver de modos diferentes são prerrogativas das pessoas. Também não importa quem está certo ou errado entre os dois.
A única coisa que chama atenção em tudo isso é o fato de Paulo e Pedro serem irmãos gêmeos.

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As três idades do homem

Na cidade de Tebas, na antiga Grécia havia um monstro, chamado Esfinge, que fazia a mesma pergunta a todos os viajantes que por ali passavam: "Que animal tem quatro pernas pela manhã, duas á tarde e três à noite?"
Quem não soubesse responder à estranha pergunta era devorado pelo monstro. Édipo, ao ser inquirido pelo monstro com essa questão, respondeu: esse animal é o homem. Na manhã da sua vida ele engatinha, andando com quatro pernas; à tarde, quando já crescido, anda em duas pernas, e á noite, quando envelhece, usa uma bengala, andando, portanto, com três pernas. A resposta estava correta e o monstro o o deixou passar.

Essa metáfora é interessante e nós a evocamos para ilustrar as três fases da vida do homem; a sua vida cronológica, que se traduz pelo tempo que ele vive, a sua idade biológica, que se refere ás condições do seu corpo, e a sua vida psicológica, que é a forma pela qual ele sente, vê e pensa estar vivendo.
O homem é a única espécie que contabiliza sua vida pelo tempo decorrido. Esquece-se que o tempo é mera abstração da nossa mente, que dela precisa para organizar sua vida numa sucessão de eventos lógicos e sequenciais, processo sem o qual ela teria dificuldade para entender o mundo em que vive.
Mas essa qualidade da nossa mente também tem suas desvantagens: ela nos traz, como disse o poeta Vinicius de Morais, a consciência da morte, que é a angústia de quem vive. Ela também nos faz conscientes do processo de envelhecimento, que junto com a consciencia da morte nos traz igualmente angústia e depressão.
Julgar a idade pelo número dos anos vividos não é, de certo, uma estratégia muito boa para a saúde. Também não é muito correta nem lógica. Uma pessoa de trinta anos, em virtude do seu estilo de vida, pode ter um organismo muito mais envelhecido do que uma de quarenta que mantenha hábitos saudáveis de vida. E o que dizer da parte psicológica, quando se observa um jovem de vinte anos com uma mentalidade tão inflexível que surpreende até um octogenário?
Já se disse que há velhos moços e moços velhos, e essa é uma indesmentível verdade, da mesma forma que a saúde orgânica não está, de forma inexorável, relacionada com a idade cronológica das pessoas.
Só o tempo é uma variável que avança em linha reta. Ele percorre um espaço unidimensional que só pode ser medido ponto a ponto. E ele só existe por causa da capacidade da nossa memória em armazenar experiências passadas. Dai esse nosso estranho e não muito saudável hábito de ficar acumulando aniversários. Fazemos questão de medir e comemorar as passagens da nossa idade cronológica mas pouco nos ocupamos de medir e cuidar das nossas idades biológicas e psicológicas. No entanto, são estas duas últimas que pavimentam (e ornamentam) a estrada que nos leva a esse objetivo substancial da vida, que é a felicidade. E elas não se medem pela régua do tempo.
Felicidade é viver com qualidade. Qualidade em todos os sentidos: moral, espiritual, social, econômica, relacional. Para isso, o que menos importa é a idade cronológica. Mas está estreitamente vinculada à nossa idade biológica e psicológica. Ninguém pode ser feliz se o seu corpo não experimentar um estado de saúde; da mesma forma, se psicologicamente a pessoa não se sente bem, não pode experimentar felicidade. 
É claro que o tempo leva ao desgaste do organismo e esse desgaste acaba comprometendo também a saúde da mente. Porque de nada adianta a vontade de fazer sem a correspondente força física para realizar. Mas essas condições de vida― idade biológica e idade psicológica― não são grandezas diretamente proporcionais, que aumentam ou diminuem conforme uma ou outra o faça. Há muitos exemplos de pessoas cronologicamente idosas que mantém corpos biologicamente saudáveis porque hospedam mentes psicologicamente jovens. E essas duas últimas variáveis podem ser manipuladas pela nossa vontade. Já o tempo não.
Em cima dessa ideia nós criamos a nossa metáfora. Mais que uma simples frase de efeito, ela é um pressuposto para uma vida feliz. A metáfora é a seguinte: quero morrer tão jovem quanto possível, o mais tarde que eu puder.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 11/10/2010
Reeditado em 11/10/2010
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