A HISTÓRIA DE AGNES

Na aldeia de Charrt vivia uma menina de oito anos chamada Agnes. Ela tinha sete irmãos, quatro meninas e três meninos, um pouco mais velhos que ela.

Agnes vivia com os pais e seus sete irmãos numa casa grande, nos limites de Charrt.

Ela não era muito alegre, nem muito triste. Falava pouco e trabalhava muito, tirando leite das vacas, cuidando da horta e do jardim, recolhendo feno para os cavalos, limpando a casa e alimentando peixes e pássaros.

Às vezes, Agnes carregava dornas pesadas com seu pai, que também era muito calado.

A vida em Charrt não era lá essas coisas. Todos tinham medo de morar nas bordas da aldeia, onde esta confinava, por um lado, com a floresta antiga, e, por outro, com a estrada que levava ao deserto escuro. Charrt só tinha uma rua principal, onde moravam o ferreiro, o luveiro, a doceira, o alfaiate, o mercador e o padre. Talvez fosse a aldeia mais pobre do Reino, cujo rei tinha partido há três anos, com o filho, para uma guerra, deixando apenas a rainha- que se trancara numa torre alta, para lá das montanhas, ao norte.

Mas esta história é a história de Agnes, como me foi contada do caderno de notas do senhor D’Amour, que pesquisou a vida da menina a mando da princesa Dala, melhor amiga da nossa Imperatriz. Vou resumi-la ao máximo. Vocês entenderão o porquê.

Como eu dizia, Agnes era prestativa, mas muito silenciosa. Sendo a caçula da família, não tinha muita experiência com brincadeiras e sempre era vítima de caçoada dos irmãos.

“Foi a Agnes”-diziam.

E Agnes era repreendida pela mãe. Seu pai, ao contrário, nunca a repreendia.

Ela gostava de, à noite, pular a janela de seu quarto e deitar lá fora, no alto, junto às calhas. Naquela época, não existiam estrelas, ainda, só uma leitosa faixa de luz esparramada pelo céu, e o sol era pequeno, vermelho e muito brilhante.

Ficava assim por algumas horas e depois ia dormir, pois tinha que acordar às quatro da manhã.

Agnes chorou algumas vezes. A primeira vez foi quando derramou o leite, e levou uma palmada.

A segunda vez foi quando desperdiçou água ao regar as plantas.

A terceira foi quando esqueceu de trocar os lençóis dos irmãos.

A quarta foi quando acordou tarde.

A quinta foi quando errou uma conta. Sua mãe era muito boa de contas. Como Charrt não tinha um colégio, as crianças eram educadas em casa. Todos tinham que saber tudo, de escrever a fazer remédios com as ervas.

A sexta foi quando deixou as roupas no varal durante a chuva.

A sétima foi quando quis ir ao circo. Dessa vez, ela disse, bem alto:

-Eu quero ir ao circo.

-Não vai, respondeu a mãe.

-Por quê?

-O circo é perigoso.

-Mas...

-Não vai. Ou vai apanhar.

Todas essas vezes, Agnes apanhou e foi, à noite, deitar-se junto às calhas, chorando.

Um dia, Agnes saiu cedo com seu pai para jogar dornas cheias de óleo velho no poço. O poço era o marco delimitador de Charrt. De um lado, o deserto, do outro, a floresta e, no meio, a aldeia. Ficava a oito quilômetros da casa de Agnes. Diziam que monstros habitavam ali.

No meio do caminho para o poço, a mãe de Agnes veio correndo, gritando:

-Marido! Marido!

-Que foi, esposa?

-O rei! O rei voltou!

-Certo, depois eu vou lá.

-Vamos, marido. Deixe Agnes carregar as dornas para o poço. Ela já tem idade.

O pai de Agnes disse, triste:

-Você pode, Agnes?

-Posso, sim, pai.

-Cuidado. Qualquer coisa, volte direto para casa.

-Não antes de lavar as dornas, Agnes, disse a mãe.

-Certo.

-Vamos, esposo, vamos!

E Agnes foi levar, sozinha, as três grandes dornas para o poço. O sol estava alto, o vento, frio, e a areia- pois ali já começava o deserto, queimava os pés; a menina agiu rápido, e estava voltando com as dornas vazias por lavar quando ouviu alguém dizer:

-Ei!

Era uma voz de criança. Agnes tremeu de medo, pois o chamado vinha de dentro do poço.

-Ei! Vem cá!

Agnes se aproximou da boca do poço e olhou lá para dentro. No mesmo instante, saiu de lá uma menina bem pequena, que disse:

-Por que está jogando óleo no poço? Não vê que eu moro aqui com minhas duas irmãs?

-Desculpe, eu não sabia.

Duas outras meninas bem pequenas saíram de dentro do poço. Disseram, juntas:

-Foi ela quem jogou óleo na gente?

-Desculpe, foi um engano, disse Agnes.

As três olhavam para Agnes com estranheza.

-Você é educada, disseram as meninas.

-Obrigada.

-Você gosta de brincar?, perguntou a primeira menina.

-Nós gostamos..., disse a segunda.

-Muito!, concluiu a terceira.

-Gosto, mas tenho muito trabalho, respondeu Agnes. Do que vocês brincam, dentro do poço?

Elas fizeram uma longa pausa. Entreolhavam-se, num misto de surpresa e excitação.

-Desenhamos. Contamos histórias uma para outra. Nadamos. Jogamos pique-esconde. E você, gosta de quê?

-Eu queria ir ao circo.

-Mesmo?, disseram em coro. E como é o seu nome?

-Agnes.

Uma lufada de vento suspirou, demoradamente.

Aqui, a história contada pelo senhor D’Amour é muito reticente. Admito que não entendi muito bem. Mas, prossigo. Sete dias depois o circo chegava a Charrt. Agnes, neste intervalo, parecia muito mais triste do que antes. Cumpria seus deveres rápida e diligentemente e, depois, sumia. Com o retorno do rei, porém, tudo estava diferente, e ninguém deu muita atenção ao estado da menina.

O circo só ficou uma noite. Um acampamento foi montado próximo ao quintal da casa de Agnes. Naquela tarde, alguém a viu observando, da janela do sótão, o movimento de artistas, carros e animais.

Ela foi dormir cedo, lá pelas oito horas. Todos se recordam deste dia, pois foi a primeira vez que uma chuva de estrelas cadentes caiu sobre Charrt. Durou até a madrugada. Não se sabe se Agnes viu, também.

Ao meio-dia, nenhuma notícia dela. Todos estavam desesperados, quando um grito horrendo veio dos lados do galinheiro. Era o pai dela.

-Minha filha!..., dizia.

Agnes jazia de bruços, nua e surrada, no chão, cercada de penas, terra, excrementos e galinhas. Havia sangue em suas mãos e costas.

-Tragam água e um lençol, agora!, disse o pai de Agnes, em desespero.

Ele limpou o corpo da filha com pressa e cuidado. Os olhos de Agnes estavam fechados. Pressionou o peito da menina. Ela não respirava. Marcas vermelhas cobriam seu pescoço e barriga.

Ninguém dizia nada. A mãe de Agnes pegou uma vassoura e se pôs a varrer o local, olhando para o solo.

Horas se passaram, até que, quase à noite, de repente, a menina acordou, e chorou pela oitava vez. Seu pai a pegou nos braços e a deitou em sua cama. E todos foram dormir.

No dia seguinte, Agnes tinha sumido.

(o que vou contar agora não está no caderno de notas do senhor D’Amour)

Esta é a história verdadeira de Agnes Bidinbel. Depois que seu pai a deixou e todos foram para seus quartos, ela se levantou e, envolta em seu lençol, caminhou até o galinheiro onde fora violentada. Lá sentou, e... como dizer isto? Ela não era mais Agnes. Tão súbito quanto muda o vento, a menina se tornou algo independente das palavras e das ações. Bidinbel...é apenas um nome. Quer dizer “chuva de estrelas”na língua de Charrt).

CONTINUA.

Bidinbel, Bidinbel,

é bela e é cruel.

Bidinbel, dá um presente,

que não agrada a gente...

Antes era uma menina,

agora ela é divina...

Bidinbel, Bidinbel,

amarga como o mel...