Desencantar de Um Homem
Paris. Aonde quer que fosse ali estava ele a ocupar o recinto. Para onde se dirigisse a mulher o encontraria naquele aposento, sempre ele, sempre o mesmo espaço, a mesma parede, o mesmo teto. Ela pisava o mármore em silêncio para não anunciar a própria presença. Sentia-se leve, mas tinha um corpo com muitas carnes. Eram carnes imaginárias ou etéreas, posto que não lhe pesasse um grama sequer. Atravessara a cidade em fração de segundos. Não viera à procura desse homem, nem sabia por que ali se encontrava. Saíra de um sono sem lembranças.
O homem se deteve em frente ao enorme espelho a tomar toda a parede do corredor. Era o único morador daquele apartamento de grandes dimensões. Desviou o olhar ao sentir-se vigiado. Um leve aroma trazido pelo vento a penetrar pela estreita abertura da vidraça chamou a sua atenção. A cortina em voil balançou suavemente. Retornou ao espelho, já com certa curiosidade sobre si mesmo. Os sessenta e nove anos ainda lhe ofereciam um ar juvenil. Quando criatura tenra, fora conhecido como menino prodígio. Olhou-se novamente, as rugas ainda não marcavam de todo o rosto, mas podia notar-se uma névoa nos olhos. Era bem verdade que ela sempre estivera ali, denunciando uma tristeza, não sabia de quê.
Naquele momento de solidão, ficar em frente ao espelho era algo não aconselhável. Deu um passo para trás e a imagem se mostrou por inteiro. De repente, o mesmo perfume lhe penetrava as narinas. Viu que a cortina voltava a mover-se ligeiramente. Imaginou que alguém de outro apartamento estaria exalando aquela fragrância. Lembrou-se que o único apartamento de residente feminina naquele andar estava vazio. Era de uma mulher de meia idade que muito viajava. Talvez uma bela do andar de cima ou do de baixo. Retornou a si, à própria imagem. Alto, magro, pernas longas, peito estufado, feições delicadas, olhos miúdos, de um azul profundo e obscuro, cabelos cortados, rentes ao pescoço, deixavam sobressair alguns fios brancos; no mais, era um homem sem grandes ostentações.
Aproximou-se do espelho, mais e mais. Ilusão de ótica, ou realmente penetrava naquela lâmina de cristal? Conhecia estórias de espelhos mágicos. Uma acuidade visual lhe dava a percepção de imagens do passado; eram reminiscências quebradas em cúbicos. Faces fantásticas retratavam tempos idos. Da profundeza do ser veio a saudade.
Uma rajada de vento frio tirou-lhe daquele devaneio. Dirigiu-se à janela e inclinou o corpo por sobre a cortina, na tentativa de controlar a ventania. Tentou fechar a brecha, mas era como se alguém teimasse em mantê-la aberta. O perfume intensificava e o coração batia-lhe acelerado. Um raio cruzou ao longe. A janela se fechou milagrosamente. O aroma se dissipou.
Era um Adido Cultural em Paris. Poderia ter sido um embaixador do Brasil, em qualquer país. Preferiu tornar-se um funcionário diplomático a fim de permanecer na França. A cultura do país lhe oferecia uma colcha de retalhos artísticos, e lhe enriquecia a alma de escritor. Era um escritor hermético, nos escritos e no temperamento, mas possuía uma grande visão artística. Um mundo colorido que gostava de apreciar de longe. Sob certo ângulo, gostava de ser admirado pelos confrades das letras, embora os preferisse à distância. Provavelmente resquícios de infância. Mesmo assim, os seus livros correram mundo. Mas uma cidade, a cidade que o vira nascer, não os lia há muito. Desejou regressar àquele rincão.
Naquele final de tarde fria a solidão o comprimia. O apartamento deserto pedia uma família. Tivera poucas mulheres, aquecedoras, mas sem vínculos matrimoniais; passageiras mesmo. Por vezes, ainda jovem, pensara em alguém de sua origem, para preencher as noites vazias; preferiu, no entanto, a liberdade, mas o que lhe restou foi uma crepuscular existência.
O corpo pedia repouso. Atravessou o salão em direção ao quarto. No corredor, a luz do spot fixado no teto estava direcionada para o assoalho e formava um círculo iluminado, como se uma lua cheia estivesse ali pousada. Olhou o espelho, de viés. Não gostaria de rever cenas fantasmagóricas; muito menos sentir aquele estranho perfume. Desviou as passadas como quem não quisesse pisar a lua. Avançou rápido para o interior do quarto de dormir. Jogou-se na cama, o estrado fez um gemido. O rangido despertou-lhe os pensamentos para a ideia de retornar ao Brasil. O desejo vago tomava forma, e a lembrança do passado distante se aproximava cada vez mais. Despediu-se de Paris.
Um vento sertanejo, quente, dá-lhe boas-vindas. A cidade adensa-se na sua alma. As lembranças pairam no ar e ele se encontra dentro de si, com o seu passado; quer chorar, não consegue. As ruas são as mesmas, abertas, largas, asfaltos remendados, e uma profusão de rostos desconhecidos. O corpo se retesa. Imagens difusas de rostos que pensa serem, não passam de alucinação. De repente, um perfume no ar. Aquele aroma lhe parece familiar. Uma jovem folheia revista em uma banca próxima. Decide aproximar-se; hesita por um segundo. A jovem levanta a vista e lhe sorri. Deve estar por volta dos dezenove anos de idade. Aquele rosto lhe diz algo, ou seria apenas o cheiro do já visto ou do sentido? Ela continua sorrindo-lhe. Ele a fita e as pupilas se dilatam. Ela desvia o olhar e o sorriso desvanece.
Os dias se passam e ele não mais a vê. Tenta encontrá-la, em vão. Decidido a retornar a Paris, reencontra-a por acaso. Os encontros são inevitáveis. Um amor profundo os une, sem que ambos admitam. De princípio causou estranheza nos habitantes da pequena cidade o relacionamento de uma jovem com um homem idoso.
Cenas de rejeições se manifestam pela cidade. O homem de posição intelectual brilhante cai no ostracismo de uma gente que deveria enaltecê-lo. Ainda que os seus livros se tornem best-sellers por todo o país, a glória desaparece a olhos vistos por todo o município. A jovem se ressente desse proceder da sua gente. Pensamentos crescem e tomam vulto na mente da mulher apaixonada, deixando-a angustiada. Uma vez plantada a ideia, a decisão é inevitável.
O homem das letras se aproxima da banca de revista, abre o jornal e segue a ler as manchetes. Prossegue a leitura no caderno de notícias sociais. As imagens saltam à sua vista, o casamento da jovem amada, com alguém de idade aproximada. Não crê no que vê, deixa escapar um gemido gutural.
O ônibus distancia-se pela estrada infinita. Um idoso medita recostado à poltrona. Olha pela janela as árvores que passam velozes, transparentes. Tudo lhe parece tão etéreo, tão esfumado, o carro, os passageiros. O som é tão ausente quando o silêncio. Sente apenas um perfume, aquele perfume. Um rosto vai surgindo em sua mente, a sua velha amiga. Sim, então era ela, aquela velha amiga, cinquenta anos mais velha, que teimava em ser a sua mãe, a sua avó, a sua…, sabe-se lá o que…