Filhos da Liberdade

Filhos da Liberdade

O mundo estava á caminho do caos, a intolerância, o ódio e a descrença criaram chagas que jamais seriam cicatrizadas. Famílias inteiras morriam de fome e a crise não poupara nem mesmo os mais ricos. Anne vivia com seus pais em um subúrbio, o cheiro de urina e os bêbedos eram as únicas coisas marcantes daquele lugar abandonado por Deus. Seus pais trabalhavam em uma mina de carvão, ganhavam pouco e o pouco que ganhavam não dava para nada. Anne havia se tornado uma mulher bela, de aparência exótica e delicada. Dizia aos pais que conseguira um emprego de secretária no centro da cidade, uma mentira necessária para encobrir sua real profissão.

Ela esperava no inicio da noite seu primeiro cliente, estava com um vestido barato cor vinho, os lábios pintados e as pernas a mostra. Ela esperou com uma cigarrilha entre os dedos, estava frio e já não havia mais ninguém nas ruas. Uma caminhonete virou a esquina, os faróis altos ofuscaram sua visão, dois homens altos saíram e a agarraram violentamente pelos braços. Ela resistia, mas isso só aumentava a força daqueles estranhos homens. Quando ela gritou teve sua boca amordaçada e o rosto coberto por um capuz preto mal cheiroso. Durante o trajeto os homens pouco falaram, a caminhonete chacoalhava e o barulho do motor era ensurdecedor. O caminho fora longo e tortuoso causando enjôo, até que enfim o barulho cessou. Com um solavanco rápido ela foi tirada da caminhonete e lançada com violência ao chão. Uma voz rouca se aproximou devagar e disse;

- Mais uma prostituta soldado?

O soldado limpou a garganta e respondeu;

- Sim senhor, achamos que ela é uma judia...

O soldado revistou a bolsa da garota a procura dos documentos. A confirmação logo veio tratava-se de uma filha de judeus. O soldado levantou a garota e tirou o capuz. Anne sentiu o sangue gelar nas veias, pois ela havia escutado boatos de que os judeus estavam sendo caçados. Apesar da sua discrição isso não impediu sua captura. O comandante a olhava com frieza e repugnância, assim como se olha para um cachorro sarnento ou um velho leproso.

- encontrem a família dela se ela tiver. Capturem todos, temos ordens claras para captura-los.

A garota foi levada para uma galeria subterrânea e colocada em uma sala escura, milhões de outras vozes murmuravam ou choravam em silêncio. Ela ficou a espera do ainda estava por vir.

Do outro lado, Stefan, recebia sua convocação. Exibiu um sorriso largo ao abrir o envelope e constatar de que havia sido escolhido para servir ao seu Pais. Seus olhos azuis brilhavam de satisfação ao ver o orgulho dos seus pais. Preparou suas malas rapidamente e viajou logo pela manhâ. Durante as primeiras reuniões ele percebera que havia algo errado, um objetivo grandioso e oculto, e os soldados serviriam de força motriz para concretizar o que ainda estava por vir. Com o passar do tempo às idéias se tornaram contraditórias, mas ele não poderia viver como um desertor, seria uma decepção ao seu pai. Ele preferia morrer em combate, do que suportar a revolta do pai, um soldado aposentado.

Era um dia frio, a névoa gélida entrava pelos pulmões queimando as narinas. Stefan jamais vira algo do tipo, filas intermináveis de pessoas pálidas e desnutridas. Caminhavam a passos lentos e tristes. Em meio a esta cena, um detalhe tornara tudo colorido. Uma moça pálida de cabelos raspados encarava o chão, levantou olhar rápido para encarar o jovem direto na alma. Aqueles olhos verdes eram incríveis, apesar da frágil aparência ainda havia força, havia vida. Algo o deteve por alguns minutos, perdido em meio aquele purgatório, ele havia encontrado uma flor em meio às cinzas.

Durante dias ele a observou em silêncio, admirando-se com a beleza doce e jovial. Uma sensação nova lhe invadia o peito, com cada gesto da garota, a cada palavra de alento que ela dirigia aos outros prisioneiros.

Havia uma troca de olhares sutis entre os dois, ninguém deveria desconfiar que eles haviam se encontrado várias e várias noites em uma choupana de armas e munições. E sobre as lonas encardidas e roupas velhas, a luz de uma lamparina, eles haviam se entregue ao mais sublime amor. Um amor que de fato estava fadado à desgraça.

Os dias eram longos e pesarosos, ele assistia em silêncio o definhar de sua amada. A alimentava em segredo, suportando os interrogatórios desconfiados de seus companheiros, que já começavam a achar muito estranho suas saídas repentinas. Então uma notícia o pegou de surpresa. Anne guardava em seu ventre o fruto de um amor proibido. Se as chances de Anne sair viva daquele inferno eram poucas, imagine para um bebê nascer em meio à fome, a doença e a violência.

As câmaras de gás, o tifo, as experiências nefastas, as pilhas de corpos cobertos por cal, não se comparavam com o medo de ter Anne e o bebê mortos e ele tido como traidor. Então ele elaborou um plano para que Anne se mantivesse isolada dos outros, em uma ala abandonada. Diariamente ele levava alimentos para a garota e a manteve segura por sete meses.

Sete meses exatos até a noite de seu nascimento. Anne suportou as dores do parto, lutando a cada contração. Já estava enfraquecida e debilitada, mas o bebê clamava por vida, que logo veio. Um bebê pequeno e frágil, possuía um choro tímido. Stefan suspeitava que o pequeno não suporta-se mais que uma noite de vida, mas apesar da fragilidade aparente, o pequeno era forte e lutava para viver. Anne sorriu ao segura-lo nos braços pela última vez. Um último sorriso, uma última vez.

Stefan precisava pensar rápido e agir com discrição. Elaborou um plano para sair do campo sem levantar suspeitas. Forjou uma carta autorizando sua saída para buscar mantimentos bebidas. Saiu à noite em uma caminhonete com o bebê posto dentro de uma pequena caixa. Ele quase não se mexia e de hora em hora, Stefan certificava que ainda estava vivo. Dirigiu por uma longa estrada, alguns caminhões cheios de prisioneiros cruzavam o seu caminho, mas nenhum interrompeu a sua viagem.

Depois de uma longa e tortuosa viagem, Stefan chegou à casa dos pais, as luzes estavam apagadas e então sem fazer barulho ele deixou o pequeno pacote à porta. Entre as cobertas do bebê, havia um envelope e estava escrito, perdoe-me.

Stefan retornou ao campo, visivelmente exausto pela viagem. No portão principal um grupo de soldados já o esperava, com olhares nadas amistosos.

- Olá, Stefan. Já sabemos do seu segredinho. O coronel ficou muito aborrecido ao saber que um dos seus formulários desapareceu misteriosamente. - Talvez você possa nos explicar com detalhes o que houve. – disse soldado mais corpulento.

- Não sei do que esta falando!! – disse ele tentando ocultar o nervosismo na voz.

- Ah...não sabe, pena que não podemos perguntar a prostituta judia, não é!

Ver alguém se referir a Anne desta forma fez o seu sangue fervilhar nas veias, não de medo, mas de ódio.

- Você é um traidor, traiu nossa raça, nossos princípios, maculando o nosso sangue com aquela vadia!

Isso bastou para que ele lança-se o punho contra o soldado, uma explosão de ossos e sangue voou pelos ares, com o corpo envergando para trás em direção ao solo. O soldado caiu inconsciente. Stepan foi surpreendido por outros e então foi encaminhado ao encontro do Coronel Polesky.

Com os punhos para trás, Stefan esperou até ficar frente á frente com o seu futuro executor. O coronel caminhou com passos lentos e pesados, segurando um saco preto. Jogou aos pés do soldado desertor, e disse;

- Sabe o que é isso Stefan? – aproximando a cigarrilha fétida do seu rosto. – É o que sobrou dela, depois que a encontramos a socamos na fornalha com todos os outros. É exatamente o que farei com você!

A sua ultima visão daquela noite foi o soldado nocauteado lhe acertando em cheio no queixo com um soco inglês.

Fatos inenarráveis aconteceram. Stefan sofreu torturas e agressões que o levaram aos limites da resistência humana. Tudo terminava subitamente, para que ele recobra-se a consciência e logo tudo recomeçava. No último dia de vida, mesmo depois de interrogatórios intermináveis, ele jamais revelou o seu maior e mais precioso segredo. Morreu ciente de que seu maior tesouro estava á salvo, o seu filho.

O menino cresceu sem compreender o porquê de avós tão superprotetores. Eles se mudavam com frequência e isso só parou quando finalmente a guerra acabou. O menino se transformou em homem rapidamente e começou a questionar os avós sobre suas origens, o que eles sempre mantiveram em segredo. Uma noite fria de inverno sua avó Meredith lhe dera boa noite e deixara um pequeno envelope marrom sobre a cama. Não havia nada melhor para ser revelado do que por meio de palavras. Ele abriu o envelope e leu cada linha ali contida;

Meu filho. Não poderei vê-lo crescer. Não poderei partilhar dos teus momentos de alegria, isso me entristece, mas sei que viverás para contar a nossa história. Você nasceu em uma época de guerra, em uma união improvável de amor. Eu um alemão que não trai minhas convicções e uma judia condenada a morte. Saiba meu filho que você é a vitória, você é a vida que nasceu em um campo de concentração, você é a prova de que o amor ainda existe e pode vencer á tudo e todos. Entreguei minha vida para que você vivesse e me sinto honrado por isso. Pois sei que no futuro você se tornará um grande homem. Eu sempre o amarei, assim como amei a sua mãe, nunca se esqueça do que você é, e de quem você é, meu filho.

Stefan Sebastian Kepfer. 1942

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 08/10/2010
Reeditado em 16/10/2010
Código do texto: T2545445
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