A PEDRA

Por um triz a pequena pedra não virou pó sob o golpe da marreta. Contorceu-se, mas acabou rolando pedregal abaixo. Não fosse a correnteza de um rio que por ali passava, a jorrar em abundancia, teria sido em vão o esforço. Deixou-se levar pela ondulação das águas correntes. De repente, uma queda abrupta se fazia e alastrava-se, a levar consigo detritos de árvores em decomposição. A enxurrada adernava a pedra que não conseguia manter-se equilibrada e que fora parar nos braços de uma árvore fincada nas margens. Era árvore a dar sustentação a terra, para que esta não entupisse o rio. Uma raiz externa dessa árvore, ao perceber a dor da pedra, segurou-a com firmeza. Cuidou de cobri-la com um verde manto de limo. A pedra se sentiu protegida e passou a ser o afago da raiz; já nem parecia ser uma pedra, com a dureza de pedra. A vida escorria entre as duas. Adivinharam os sentimentos uma da outra e fingiam não se darem conta da pueril sedução que as envolvia.

O rio se acalmava e suas águas límpidas batiam suavemente na pedra e retiravam-lhe o limo. Um dia, a pedra percebeu-se limpa e livre. Voltou à condição de pedra. Aventurou-se nas águas do rio. A raiz, que já havia se acostumada à presença da pedra, endoideceu-se. Esticava-se por toda a margem à procura da pedra. O esforço afetava o tronco da árvore, que reclamava da inquietude daquele tentáculo. A pedra se fora. A raiz, sofrida, sentia-lhe a falta e de tanto procurar a pedra, acabou ferida pela aspereza das outras pedras que por ali se estabeleciam.

O tempo passava como passavam as águas do rio. A raiz atreveu-se a perguntar àquelas águas, por onde andaria a pedra. As águas não souberam responder, eram outras águas, não conheciam a tal pedra. A raiz ia se definhando, com saudade da pedra. Mas, sensível, compreendia que a pedra era de outra natureza. Assim, não poderia condená-la pelo abandono. A pedra seguia o seu destino, aventurando-se rio abaixo, a sentir-se cada vez mais limpa pelas águas do rio, que deslizava tranquilamente. A pedra se deixava fluir na placidez daquele líquido. Esqueceu a raiz, não se sabe se, porque tinha coração de pedra, ou porque era feliz na aventura de se deixar levar pelas águas cristalinas.

Um dia, a pedra de tanto se arrastar na corredeira do rio percebeu que já não era uma pedra lisa, mais parecia uma pedra-pomes, cheia de furos. Então, lembrou-se da raiz e sentiu que se estivesse com a amiga, estaria protegida pelo limo. Remontou à época em que era alimentada e acalentada pela raiz. Agora, de poros abertos pelas águas, alquebrada pelo frio, dava-se à autocomiseração. Ao despertar para a realidade, sentiu vontade de retornar àqueles braços. Com o coração devastado pelas intempéries, recordava a velha raiz, o seu cheiro de madeira molhada, seu jeito disfarçado de sentimentos obscuros, ocultos, inexprimíveis, cheios de mistério! E ela, uma pedra-verde, sentia-se quase uma muiraquitã, amuleto daquelas árvores, uma celebridade naquele mundo!

É!... Mas as águas não retornariam. A descoberta tardia revelava a angústia de não mais tornar ao aconchego da velha amiga. Essa impossibilidade fazia-a mergulhar nas incertezas profundas do rio. Quem sabe seguir avante na aventura amorosa das águas, a engolfarem-na em rituais de fluxos e refluxos, enleando-a na confluência do rio Parnaíba com o Poti e com o Igaraçu.

Tarde demais! Distraída pela fantasia, a pedra não conseguira escapar da marreta.

Rita de Cássia Amorim Andrade
Enviado por Rita de Cássia Amorim Andrade em 06/10/2010
Código do texto: T2541220
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.